“ACABA DE ME MATAR”

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Tudo indica que o movimento nasceu em Luanda. Presumivelmente num bairro suburbano ou noutro tipo de periferia político-social. Jovens deitados no chão com blocos de construção tomaram conta das redes sociais.

Maria Luísa Rogério

A inesgotável criatividade popular estimulada pela fome, como canta Ângelo Boss, substituiu blocos por outros materiais em poses para lá de ousadas. Algumas delas chamaram especialmente a atenção por causa do alto risco. Muita gente considerou irresponsáveis quem cobriu a cabeça com areia ou lixo. Bendita polémica. Os precursores do movimento terão ficado satisfeitos pela visibilidade da onda “acaba de me matar”. O movimento está na boca do povo. Impulsiona intensos debates. Muitos discordam da enérgica forma de contestação contra “os problemas que estamos com eles”.

Para quem não sabe, “acaba de me matar” é a designação atribuída pelos luandenses aos candongueiros desgastados pelo uso. Comparativamente aos “quadradinhos”, geralmente em bom estado físico, a maioria até com ar condicionado, o “acaba de me matar” auxilia em momentos de escassez. Viajar num desses táxis colectivos significa assumir o risco de ver o carro a se desintegrar a qualquer instante. Daí o sugestivo nome dado ao azulinho que mais parece um conjunto de peças insistentemente acEopladas com a finalidade única de render alguns kwanzas. Inspirados na configuração do potencial causador de acidentes, jovens aguerridos desencadearam o “acaba de me matar”. Uma bem conseguida metáfora que funciona como veemente protesto num país em que abundam razões para descontentamento.

O “Acaba de me matar” reflecte o grau de saturação diante da maneira negligente que muitos servidores gerem o bem público. Serve contra o descaso face a problemas comuns numa equação em que o cidadão é simplesmente ignorado. Faltaria espaço para enumerar exemplos de seres humanos confundidos com números frios nos discursos de “balanços positivos”. As falhas recorrentes cabem num estrondoso “acaba de me matar”. A péssima distribuição de energia eléctrica e água aos consumidores de Luanda merece muito mais do que o simbólico hastear da bandeira de contestação emergida das periferias luandenses. De acordo com dados oficiais, a crónica maka da energia estaria regularizada em 2012. Depois as promessas recaíram para 2017. Já estamos em 2018.

A lógica alterou-se de tal maneira que quase ninguém questiona aquilo que seria absolutamente anormal noutras paragens. Não se compreende como é que moradores de determinada área fiquem longos meses desprovidos de um serviço para o qual pagam regularmente. Aliás, não ter dívidas é condição indispensável até para registar avarias. Para uma empresa com tão baixa reputação, os funcionários do call center da ENDE são incrivelmente atenciosos. Transmitem a impressão de terem sido bem treinados para administrar doses cavalares de calmantes de alta eficácia, inclusive para o citadino indignado. Anotam detalhes, explicam, tranquilizam e no fim garantem sempre a resolução da avaria. Da promessa à concretização passam alguns bons dias.

Entretanto, a escuridão nocturna persiste. Os produtos alimentares deterioram-se. Os electrodomésticos perdem a resistência. Tem sido assim ano após ano. Ao fim da leitura, a crónica assemelha-se a reles repetição que poderia ser atribuída à falta de ideias. Sobre a distribuição de água estamos cansados. Tudo igual. Uma grande novidade introduzida este ano é a da taxa do lixo, paga conjuntamente com o consumo de energia. A velhinha fórmula está a repetir-se: dinheiro pago para serviços mal executados. Para o novo incumprimento, os moradores de uma certa zona decidiram amontoar o lixo no posto de cobrança de energia. A solução transmitiu o recado no plural: “Acabem de me matar!”

Fonte: Jornal de Angola

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