Partido-Estado em Angola: Estrutura, Persistência e Desafios – Shilda Cardoso
A independência de Angola, proclamada em Luanda em 11 de novembro de 1975, foi profundamente marcada por influências geopolíticas externas e internas. O MPLA tornou-se o partido responsável pela liderança do processo de construção do Estado angolano.
Em um cenário ideal, esse momento teria gerado acordos políticos voltados para a formação de um Estado inclusivo e representativo da diversidade dos povos do país. Após a independência, Angola manteve-se sob um sistema de partido único até 1992, quando o multipartidarismo foi oficialmente adotado. Ainda assim, o MPLA já estava profundamente inserido nas estruturas estatais. Durante 17 anos desse regime, consolidou-se como núcleo das instituições nacionais, tornando-se sinônimo de governo e Estado. Mesmo após cinco décadas, o país continua sentindo os efeitos desse modelo.
O MPLA domina os três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — e mantém forte presença em órgãos locais, setores econômicos, defesa, segurança, educação, saúde, entre outros. Gestores e funcionários públicos, especialmente nos cargos de liderança, costumam estar alinhados ou vinculados ao partido, gerando conflitos entre interesses estatais e partidários.
Ademais, os estatutos do MPLA exigem obediência às diretrizes partidárias em detrimento dos interesses da nação, perpetuando a sobreposição entre esfera pública e privada. Por outra, as instituições angolanas carecem de missão, visão e objetivos próprios, independentes da influência do poder político. Essa fragilidade institucional mantém o país vulnerável à lógica militarizada do partido-estado e reforça a necessidade de rotura entre partido e Estado para a construção de uma administração pública autônoma e republicana.
É importante ressaltar que a cultura de partido-estado não é exclusiva do MPLA. Há sinais evidentes de práticas semelhantes nos partidos de oposição. MPLA, FNLA e UNITA, apesar das diferenças políticas e do histórico de conflitos, compartilham estruturas organizacionais e práticas centradas no partido.
Tanto o MPLA quanto a UNITA, por exemplo, já atuou como governos paralelos, com estruturas militares, organizações femininas e juvenis. Essa cultura partidária, sustentada na ideia de “nós contra eles”, coloca desafios adicionais à consolidação do Estado e pode ser reproduzida por qualquer força política que venha a assumir o poder.
O desafio central de Angola reside em romper com o modelo de partido-estado. Substituir apenas o partido dominante por outro não representa verdadeira transformação, pois as instituições continuam sem autonomia republicana. Para que Angola avance, é necessário promover uma reforma estrutural que separe o Estado do controle partidário e valorize o interesse nacional acima de interesses políticos.
O cenário ideal, caso a oposição conquiste uma vitória eleitoral, seria romper definitivamente com o modelo de partido-estado em vez de simplesmente substituí-lo. O objetivo deve ser criar um Estado genuinamente patriótico, com responsabilidades compartilhadas entre todos os angolanos, elevando o país e suas instituições ao patamar de meritocracia, onde os quadros mais competentes assumam funções, independentemente da filiação partidária.
Dessa forma, as instituições atingiriam níveis de autonomia e complementaridade, com poderes capazes de julgar por si mesmas, fundamentadas na lei e voltadas para o bem comum, superando a cultura de ordens vindas da liderança partidária conforme o atual modus operandi.
Cabe especialmente à UNITA, maior força opositora, em caso de uma alternância política a responsabilidade de romper o sistema do partido-estado. A UNITA não carrega os mesmos vícios, interesses pessoais ou temores judiciais que marcam o MPLA a 50 anos como governo.
Esses fatores explicam, em grande parte, a resistência do MPLA em abandonar o sistema que o sustenta. Nesse contexto, toda liderança age sob uma única orientação, protegendo-se mutuamente e compartilhando responsabilidades pelos mesmos erros, evitando contradições e divisões, estejam certos ou não.
Diante disto, entende-se que a intenção do MPLA em reformar o modelo de partido-estado é quase nula, pois tal reforma colocaria em risco toda a hegemonia do partido, expondo divergências internas e abrindo espaço para conflitos, o que, em última análise, fragilizaria o próprio partido.
Um exemplo marcante foi a candidatura de João Lourenço em 2017, que, durante a campanha e após a vitória, demonstrou grande ambição de promover reformas no Estado, muitas das quais exigiam romper com práticas do partido-estado.
Lourenço prometeu combater a corrupção, inclusive afirmando que altos dirigentes poderiam ser atingidos. Realizar tais reformas requisitava um sistema judicial autônomo e agentes públicos orientados por um sentimento patriótico.
Havia uma expectativa significativa, inclusive entre críticos do MPLA, de que João Lourenço traria a renovação necessária a despartidarização do estado. Entretanto, as mudanças esperadas não ocorreram; pelo contrário, em alguns setores, a situação se agravou.
As razões para esse fracasso são diversas: teria o presidente subestimado o poder do seu próprio partido sobre o Estado? Acreditou ser possível reformar o Estado sem abalar as estruturas do MPLA? Ou teria João Lourenço prometido reformas sabendo de sua inviabilidade?
Independentemente da resposta, o fato é que a despartidarização do Estado representaria liberdade de pensamento e ação para os membros do MPLA, algo difícil de concretizar em uma organização acostumada à hierarquia rígida e à obediência à palavra de ordem.
Diante desse contexto, João Lourenço optou por uma disputa interna, formando sua própria ala dentro do partido e substituindo quadros, dando ao público a ilusão de uma reforma profunda, quando, na verdade, o sistema se manteve.
O exemplo de João Lourenço ilustra que qualquer candidato do MPLA à presidência de Angola será, inevitavelmente, refém de uma máquina política capaz de bloquear reformas. O MPLA e seus membros, em todas as estruturas do Estado, resistem às mudanças, principalmente aqueles preocupados em proteger interesses próprios.
O máximo que se pode esperar de um novo candidato do MPLA a presidência de Angola, é repetir a prática de conflito interno, assentando a nova ala contra antiga, mas nunca colocando em risco a máquina completa.
Uma outra indicação notória da falta de autonomia das instituições do Estado ocorreu recentemente, nos dias 28 e 29 de julho de 2025, quando associações de transporte de táxi realizaram uma paralisação dos serviços em protesto ao aumento no custo do transporte, consequência do reajuste dos combustíveis.
Infelizmente, esse movimento foi marcado por vários episódios de vandalismo e pilhagem de bens públicos e privados, por certos populares, culminando em uma tragédia de grande proporção. Estima-se que mais de 30 pessoas foram mortas pelas forças de segurança do Estado, em especial pela Polícia Nacional.
Apesar da necessidade de apuração rigorosa dos fatos, todas as instituições do Estado prontamente atribuíram culpa às vítimas, justificando as ações policiais como defesa da integridade física dos agentes.
Essa postura uniforme, sem que haja sequer uma voz de repúdio ou questionamento sobre a agressividade policial, revela um cenário anormal: em um país onde os dirigentes pensam de forma independente, seria esperado algum posicionamento crítico.
Em Angola, desde o presidente, passando pelo ministro do Interior, comandante-geral da polícia, porta-vozes, até o governador e administradores locais, todos replicam o mesmo discurso, evidenciando um atraso institucional profundo.
As mudanças e reformas em Angola apontam para a necessidade de um novo governo, capaz de romper com a máquina do partido-Estado, não sendo refém do sistema vigente. Existe, para a oposição, o risco da tentação de simplesmente ocupar o espaço do poder e reproduzir os mesmos abusos do atual regime, liderado pelo MPLA.
Por isso, torna-se fundamental que as lideranças opositoras tracem agendas patrióticas claras, desestimulem ambições pessoais e evitem repetir os erros actuais. A oposição tem diante de si a oportunidade concreta de transformar Angola em um Estado democrático de direito, abrindo caminho para o desenvolvimento nacional.
É fundamental que essa missão seja encarada como um legado para o povo angolano, uma tarefa nobre e patriótica que permitirá a inclusão de todos nos destinos do país.

