O MINISTÉRIO PÚBLICO E O «CASO DAESH»

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O processo criminal que recai sobre seis indivíduos que professam o Islão onde são acusados de serem membros do Daesh é mais uma prova de quão os serviços de investigação criminal e a Procuradoria-Geral de Angola investem na ficção como método de trabalho para justificar o orçamento que gastam anualmente.

Por Sedrick de Carvalho | Fonte Folha 8

Tivemos acesso ao despacho de pronúncia emitido pela 7ª secção do Tribunal Provincial de Luanda. A redacção deste documento tem mais ou menos os mesmos traços estilísticos do despacho de pronúncia do «Caso 15+Duas», pelo que podemos deduzir que foram redigidos no mesmo gabinete, ou seja, o mesmo «fiction writer».

Admite, entretanto, sem saber quando exactamente, que os seis acusados, incluindo uma mulher de 36 anos de idade, “criaram um grupo, constituído por cidadãos nacionais”, que entretanto “converteram-se ao Islão, transformando-se em autênticos praticantes deste credo auto-proclamado por Movimento Islâmico, e também denominado por ´Street Dawah´, ou seja, praticado na rua”.

A primeira questão que se levanta, ainda que aparentemente sem importância: como é que o Ministério Público, que leva a cabo a acusação, determina a ocorrência duma conversão? Quais os elementos que fazem estarmos perante uma conversão ao Islão? Sendo que é desconhecido até o momento em que os acusados “criaram um grupo”, então, como pode o MP falar em conversão? Mas isto, como disse, talvez seja o menos importante nessa peça acusatória.

O que claramente não é de somenos importância é juntar a alegada prática de pregação nas ruas de Luanda – uso a expressão pregação propositadamente e não a de disseminação e propagação que consta na pronúncia – com a alegação de que esta pregação era de cariz radical sobre os “avanços e alguns feitos do Estado Islâmico”, adiantando, contraditoriamente, que o faziam “por via das redes sociais”. Faziam nas ruas de Luanda ou pelas redes sociais?

Em dois aspectos: se a pregação ocorria pelas ruas de Luanda, como diz a pronúncia, e se a mensagem que difundiam não era religiosa mas de exaltação dos “supostos avanços e alguns feitos do Estado Islâmico”, então temos aqui talvez o primeiro acto imaginário do MP. Ora, as acções de pregação pelas ruas são, obviamente, visíveis, tal como são os assaltos e assassinatos que nos últimos anos têm como principais vítimas as mulheres. Andar pelas ruas a vangloriar-se de “supostos avanços e alguns feitos do Estado Islâmico”, como os serviços de investigação garantem e o MP assume como verdade, pressupõe que eles não tinham consciência das implicações penais dos seus actos. E isto – falta de consciência -, pelo perfil dos acusados, entre professores, comerciantes e militares, parece não ser possível. Mas supondo ser verdade, então o MP deveria encher a sala do tribunal com testemunhas que receberam dos acusados a pregação radical “sobre o Islão, a xarifa [será sharia?], e o califado”.

O segundo ponto sobre o método de pregação: via redes sociais. Esta contradição é gravíssima. A afirmação de que usam as redes sociais espelha a desorganização do «fiction writer», a mesma confusão no referido processo político que iniciou em 2015. Na mesma linha do documento é onde se refere que os acusados juraram “fidelidade e obediência à Abou Bakar Al-Bagdadi, líder do Daesh, e por força deste juramento foram divulgando e ensinando a fé islâmica em território angolano”. Será que o juramento também aconteceu por via das redes sociais? A divulgação ocorreu em outras partes de Angola, como se lê no final do segundo articulado da pronúncia, ou apenas em Luanda, como está na segunda linha do mesmo articulado?

O certo é que em tribunal, tanto o MP como os juízes, descartaram a versão das redes sociais, talvez por ser ficcional demais à realidade angolana. Porém, a versão de pregação radical nas ruas é igualmente ficcional, como revela o depoimento de um dos chamados ao tribunal como declarante ao qual tivemos acesso.

O declarante assume ser também muçulmano e destrinça as palavras «street dawah»: “é um termo composto por duas palavras, uma em inglês, que significa rua, outra em árabe, que significa divulgar, pregar, chamar as pessoas para religião”. Nenhuma diferença com o que fazem os outros credos, com ênfase para as Testemunhas de Jeová. Entretanto nega a existência de duas alas, onde existe a dos acusados e dos crentes em liberdades, sendo a primeira uma ala política do Islão e a segunda a ala espiritual, como aponta o MP. A suposta ala espiritual, a qual deverá pertencer o declarante que vimos citando, nega a existência duma ala política, e acrescenta que a primeira vez que ouviu falar dum estado islâmico de Angola foi quando os seus irmãos em fé foram presos.

Livros: Inimigo das ditaduras

Sim. Também estão envolvidos livros na fundamentação da acusação do Ministério Público. Segundo este órgão, dentre os diversos meios apreendidos, 38 dos 168 livros “possuem um carácter politico com elevada tendência radical e subversiva, ou seja, livros próprios para construção de pensamentos radicais, pensamentos violentos e de alguma maneira subversivos à ordem e a tranquilidade”, lê-se no terceiro articulado.

O SIC, o MP e o poder judicial angolano teimam em manter-se retrógrados, e assim permanecem fiéis à formulação de acusações por dedução dos factos e interpretação extensiva, isto numa clara violação ao que diz o Direito Penal quando afirma que «nullum crimen sine lege», corolário do princípio da legalidade, pois, como sabemos, ler não é crime. Porém, começa a fazer-se jurisprudência nesse sentido e, por esse caminho, talvez venha contemplado no novo código penal o crime de «leituras criminosas».

O articulado quarto é outro desorganizado. Nele consta uma acusação e uma alegada confissão, quando deveriam estar em articulados diferentes. Acusam um dos réus de possuir documentos pertencentes ao comando da polícia do Kilamba-Kiaxi, estes supostamente encontrados no seu computador. Como ocorreu no processo político citado, sabemos que nenhum dos advogados ou réus assistiram à perícia realizada pelo laboratório de criminalística aos aparelhos electrónicos apreendidos. Desta forma, não é possível aferir se esses documentos foram realmente encontrados nos computadores ou introduzidos pelos zelosos agentes da investigação criminal.

Quanto ao réu-confesso, sabemos que é comum os agentes da investigação criminal torturarem os detidos obrigando-os a assinarem documentos sem eles mesmo lerem o conteúdo. Nos primeiros meses da detenção houve denúncias de que foram ameaçados para confessarem. Será esta confissão que o MP apresenta? Ao longo das sessões o réu negou tal confissão.

São apontados mais cinco indivíduos como membros do «street dawah», frase que o MP nas suas alegações finais traduziu como “destratar os que chamam de infiéis, os ocidentais”.

Curiosamente, o MP deixa a solta cinco indivíduos duma organização terrorista. Quanta preocupação! A juntar-se à despreocupação do MP está o pedido de absolvição de dois dos seis réus, nomeadamente, Ana Júlia Lopes e Dala Justino Camueji, este identificado como militar.

Estamos perante um julgamento que nos faz recordar o filme «Relatório minoritário». O esquema angolano funciona da seguinte forma: tem ou simplesmente leu um livro sobre derrube de ditaduras ou Islão, então quer realizar um golpe de Estado ou um atentado à bomba; também pode ser que ao ler o «O Príncipe», de Niccolo Machiavelli, certamente o leitor será um ditador. Será esta a explicação para a existência da ditadura angolana?

O certo é que o governo e o poder judicial têm agido descaradamente com base na mera presunção e não em factos penalmente relevantes, e assim deixando evidente a sua agenda persecutória. Mas neste «caso Daesh», ao agir assim, as autoridades angolanas parecem estar interessadas no julgamento duma religião protegida constitucionalmente pela laicidade do Estado. Entretanto, é importante retermos a resposta positiva do declarante muçulmano quando questionado se considera o Daesh um grupo de mercenários que representa tudo menos o Islão.

A sentença será lida ao longo da próxima semana, porém a decisão é quase sabida de antemão: condenação por crime de leituras criminosas.