MALÁRIA CEIFA CRIANÇAS EM CAFUNFO

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Nelson Simão chora. Às 3h00 da madrugada, a sua filha Madalena Nelson, de oito meses, faleceu no Hospital Regional de Cafunfo, município do Cuango, província da Lunda Norte. Foi mais uma das inúmeras crianças que diariamente perdem a vida na vila de Cafunfo, devido a um surto de malária, desde Setembro passado.

“Levei a menina ao hospital, por volta das 15h00, com febres, mas fomos atendidos apenas às 20h00. O médico passou-me uma receita para ir comprar os medicamentos na rua, a fim de tratar a criança. Quando regressei, depois de procurar pelos medicamentos, o médico deu-me outra receita para ir procurar outros medicamentos na rua”, conta Nelson Simão.

Passadas algumas horas, o médico pediu à família para doar sangue, porque a criança precisava de uma transfusão. “Tiraram-nos o sangue, e não nos perguntaram sobre o grupo sanguíneo de cada um. Misturaram o sangue e fizeram a transfusão à criança. Não deu certo e acabou por morrer”, lamenta o pai.

Nelson Simão descreve o horror por si testemunhado. “Na mesma sala onde estava a minha filha, morreram nessa noite mais quatro crianças. Todas estavam com falta de sangue.”

Maka Angola tem estado a recolher vários testemunhos semelhantes.

Por exemplo, o caso de Nela Nunes, de quatro anos, que a 21 de Outubro deu entrada no mesmo hospital onde morreu Madalena Nelson. Fez análises, diagnosticaram-lhe malária, o médico passou uma receita e mandou-a para casa. Uma hora depois de ter recebido alta, Nela Nunes morreu em casa.

Nesse dia, Afonso Nunes, o pai desta criança, testemunhou a morte de outras oito crianças no hospital. «Uma morreu na fila de espera. O mais caricato é que os técnicos de saúde são sacrificados. Um técnico tem de atender 50 crianças por dia. Não é possível», explica.

Vários enfermeiros contactados pelo Maka Angola referem que o hospital nem sequer dispõem de seringas ou medicação para acudir os casos que recebe diariamente.

“A principal causa de mortalidade infantil é a malária. Mesmo quando pedimos aos familiares para trazerem medicamentos e comprarem seringas na rua, também não temos sangue para fazer transfusões”, explica um dos enfermeiros.

Um técnico de saúde do sector privado, também temeroso de revelar a sua identidade, explica que tem tratado vários casos de malária grave, que depois provocam anemias. “Como não temos condições nos postos médicos, quando notamos anemia nos pacientes com malária, enviamos imediatamente para o hospital.”

Para ilustrar a gravidade da situação, o referido técnico refere que só num dos postos médicos do bairro Bala-Bala, na vila de Cafunfo, semanalmente regista em média a morte de cinco crianças. “Para além das crianças que morrem no hospital e nos postos médicos diariamente, há inúmeras que morrem em casa e não são contabilizadas.”

O Hospital Regional de Cafunfo formalmente atende, para além do Cuango, os municípios do Lubalo, Capenda-Camulemba e Xá-Muteba. Mas o seu estatuto regional é apenas uma pomposidade política para encobrir a falta de hospitais nos outros municípios. As mortes reportadas referem-se exclusivamente à vila de Cafunfo, que conta com mais de 100 mil habitantes.

Esta unidade hospitalar tem apenas dois médicos em permanência, quatro expatriados norte-coreanos e dois colaboradores da República Democrática do Congo. De entre estes, apenas dois são pediatras (um norte-coreano e um congolês).

Para agravar a situação, e a somar à falta de meios essenciais, como seringas e medicação, desde o início de Outubro que o hospital tem apenas energia eléctrica – de gerador – entre as 17h00 e a meia-noite. Esteve meses sem energia eléctrica por falta de combustível.

No ano passado, durante a epidemia de febre amarela, em desespero e por falta de medicamentos, as famílias usavam «folhas de mamoeiro, mangueira, abacateiro ou laranjeira, ou outras folhas para tentarem tratar a doença», con
forme denunciou na altura o activista Justino Pedro.

A versão oficial

O delegado municipal da Saúde no Cuango, Dr. Katumba Omário, é peremptório em afirmar que “não há surto, não há epidemia da malária. A informação de que estão a morrer muitas crianças é mentira”.

“Estamos a mobilizar o nosso povo para trazerem as crianças ao hospital. Normalmente vão primeiro aos kimbandas. Até o professor vai primeiro ao kimbanda. Esse é o problema. Mas as que chegam ao hospital, nós tentamos tudo para salvá-las”, explica o Dr. Katumba Omário, também pediatra de serviço e director do hospital de Cafunfo.

“Mesmo nos Estados Unidos da América há sempre mortes. Aqui devem-se ao atraso das mamãs em trazer as crianças ao hospital. Temos de mobilizar o povo para ter um comportamento diferente”, justifica.

“Na próxima semana começaremos a distribuição [gratuita] de mosquiteiros. Observaremos alguns critérios. Primeiro, daremos às mulheres grávidas, depois às mães que vão às consultas. O problema é que algumas pessoas vendem os mosquiteiros para servirem de redes de pesca”, adianta o director do hospital.

Por outro lado, o delegado municipal da Saúde realça que as autoridades locais estão a trabalhar para que a população aprenda a tratar o lixo. “O lixo é uma bomba contra a saúde das populações. Mesmo no hospital, as pessoas sujam e têm de ser educadas.”

O médico acusa as famílias e o pessoal do hospital de mentirem quando se referem constantemente à falta de medicamentos essenciais. “Você sabe que o país está a passar mal. Estamos a atender bem. Nós [governo] comprámos medicamentos. Na próxima semana você vai encontrar medicamentos suficientes para a população. Já encomendámos”, garante.

Sobre as queixas de falta de sangue, o Dr. Katumba Omário também as desmente. “Temos bolsas de sangue no hospital. Custam caro, mas temos”, e mais não elabora.

Sobre a falta de energia eléctrica no hospital, o pediatra releva-a. “Temos das 17h00 à meia-noite. É normal. Não temos combustível e temos de saber gerir. O país está a passar mal e temos de apoiar o nosso governo”, enfatiza.

Em relação ao número de falecimentos registados na pediatria do hospital nos meses de Setembro e Outubro, o médico diz: “Eu não posso andar com os números. O importante é mobilizar o povo. A primeira coisa é essa. É preciso ajudar o povo e não criticar. Trabalho na pediatria para ajudar o nosso povo. Queremos crítica para construir, e não para destruir.”

Quanto à epidemia de febre amarela, que no ano passado assolou o município, o delegado municipal tem uma “versão extraordinária”. “Nós travámos a febre amarela e o anterior ministro, Dr. Sambo, convidou-me a ensinar a minha política de actuação. O município do Cuango está de parabéns pelo bom trabalho que estamos a fazer”, gaba-se.

Finalmente, o Dr. Katumba Omário convida a equipa do Maka Angola a acompanhar, na próxima semana, a distribuição gratuita de mosquiteiros “e também de medicamentos anti-malária” às populações mais necessitadas. Aceitamos o desafio.

Defender o pão e não padaria

“No hospital, diariamente, morrem em média cinco a oito crianças. Nós testemunhamos. As que morrem na fila de espera e as que são mandadas para morrer em casa não são registadas”, refere uma entidade religiosa que tem prestado apoio a várias famílias.

“Não há medicamentos. É a realidade. Nós, que doávamos sangue ao hospital deixámos de o fazer por causa da confusão do próprio hospital. Onde o hospital encontra sangue? Nos familiares dos pacientes. Porquê o delegado da saúde não deu o número de mortos?”, questiona-se um pastor.

“O delegado e os funcionários do hospital estão a defender o pão e não a padaria. A situação da saúde aqui é um horror, e eles escondem a verdade”, comenta o pastor.

Por outro lado, mais de 20 enfermeiros do hospital que trabalham em regime de contrato laboral estão há quase dois anos sem receber os seus salários.

“No tempo colonial, o colono dava-nos farinha e peixe seco podre para no dia seguinte termos alguma energia para irmos trabalhar. Este nosso governo nem sequer pensa que temos de comer alguma coisa para trabalhar. O regime angolano não dá nada», lamenta um dos enfermeiros.

O mesmo interlocutor refere que, no ano passado, os enfermeiros tentaram reivindicar e o governo local reagiu “com truculência”, expulsando alguns enfermeiros mais reivindicativos sem lhes pagarem os salários em atraso e sem qualquer indemnização. “Nós [enfermeiros] temos motivação para não deixarmos o povo morrer à toa quando podemos fazer alguma coisa, mas os dirigentes não têm coração”, acusa o mesmo profissional de saúde.

Por sua vez, o governo de João Lourenço ainda não deu sinais de preocupação pública com o estado actual do sector da saúde, aquele que mais afecta a vida dos eleitores. A recente visita informal do presidente da República ao cardeal Alexandre do Nascimento, que se encontrava na Clínica Multiperfil, afecta à Casa de Segurança do PR, foi grande notícia nas redes sociais, servindo de prova da simplicidade do presidente. No entanto, o povo esqueceu-se, com essa distracção, o calvário por que passa em busca de assistência médico-medicamentosa nos hospitais públicos, e a atenção urgente que o sector exige do novo líder.

Angola, de acordo com a UNICEF, é o país com a mais elevada taxa de mortalidade infantil do mundo.

Em contraste, o município do Cuango é dos mais ricos de Angola, em recursos naturais. Tem contribuído com biliões de dólares em diamantes para os cofres do Estado, e para os bolsos de alguns dirigentes, particularmente a família Dos Santos, vários generais e seus associados estrangeiros. No entanto, é também um dos municípios mais pobres e mais prejudicados pela falta de responsabilidade social de quem governa há 42 anos.

Fonte: https://www.makaangola.org/2017/10/malaria-ceifa-criancas-em-cafunfo/