Friends of Angola e Handeka apresentam queixa-crime contra juíza acusada de má conduta no processo
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Uma denúncia formal endereçada ao Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial em Luanda, Angola, levantou sérias preocupações sobre a conduta da Juíza Maria Vangui Pascoal num caso controverso envolvendo a prisão e julgamento de quatro activistas.
No comunicado datado de 26 de fevereiro de 2024, Florindo Chivucute e Luaty Beirão, membros proeminentes da sociedade civil, expuseram uma série de irregularidades que cercaram o caso desde o seu início, em setembro de 2023.
Os activistas Adolfo Miguel Campos André, Gilson da Silva Moreira, Hermenegildo José Victor André e Abraão Pedro dos Santos foram detidos em 16 de setembro de 2023, durante uma manifestação pacífica em solidariedade aos moto-taxistas.
No entanto, o que deveria ter sido um exercício legítimo de liberdade de expressão rapidamente se transformou em violência policial e detenções arbitrárias perto do cemitério de Santa Ana.
Além da detenção ilegal, os ativistas foram submetidos a um julgamento sumário no dia 19 de setembro de 2023, onde foram condenados por crimes de desobediência e resistência, sem apresentação de provas convincentes. A conduta dos magistrados durante o julgamento levantou suspeitas de interferência política no processo judicial.
A denúncia destaca ainda uma série de irregularidades processuais que impediram os ativistas de exercerem seu direito à defesa adequada. Desde a falta de acesso aos registros do processo até a manipulação do sistema de recursos, o comunicado aponta para uma clara violação dos direitos legais dos acusados.
AO
PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA JUDICIAL
LUANDA-ANGOLA
Assunto: Queixa contra a Juíza Maria Vangui Pascoal
No dia 16 de Setembro de 2023, em pleno uso de prerrogativas constitucionais, membros de diversas organizações da Sociedade civil, em solidariedade com a reivindicação dos moto taxistas e atendendo à sua convocatória pública, apresentaram-se no local marcado para concentração do que seria uma manifestação pacifica.
Questionando qual seria o enquadramento jurídico para a ordem de se retirarem do local por parte dos agentes da polícia nacional, foram alvo de violência, detenção compulsiva e ilegal, junto do cemitério de Santa Ana, os ativistas Adolfo Miguel Campos André, Gilson da Silva Moreira, Hermenegildo José Victor André, e Abraão Pedro dos Santos, detenção que culminou na articulação de um auto de notícia da polícia, completamente infundado, onde apareciam noticiados com acusação de ultraje e injúria ao Presidente da República, sendo essa a acusação lida inicialmente em tribunal.
Infelizmente, no dia 19 de setembro de 2023, foram submetidos a um julgamento sumário cuja condução deveria encher de vergonha a magistratura angolana, realizado na 9° Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal de Comarca de Luanda, no Processo n° 40/23-D, onde foram indiciados e acusados dos crimes de Desobediência nos termos do n° 1° do artigo 340°, do crime de Resistência contra funcionário nos termos do n°1 artigo 342°, do Código Penal Angolano, um crime diferente daquele que terá motivado a sua detenção e condução à julgamento.
Mesmo não se tendo produzido uma única prova de violação das normas supracitadas, foram condenados a prisão efetiva de dois anos e cinco meses, levando-nos a inferir daí uma interferência no exercício da magistratura que politizou o processo.
Durante a realização do julgamento e ainda que o auto de notícia elaborado pela polícia nacional tenha sido modificado para se adequar à acusação reformulada em sede deste, os Magistrados debruçaram-se a questionar e inquirir essencialmente, pasme-se, acerca do posicionamento dos arguidos em relação à figura do titular do poder executivo e muito pouco sobre a questão relacionada com Desobediência e Resistência.
Mesmo admitindo-se, na pior das hipóteses, terem se registado atos configurando os crimes de Desobediência e Resistência, o código penal angolano preconiza que, para crimes com penas com moldura penal abstrata até três anos e com alternativa de multa, a decisão ponderada deve recair essencialmente na multa.
Contrariando o espírito do legislador, desde a sentença até à presente data, estão os ativistas injustificadamente privados de liberdade, uma decisão que viola as normas nacionais vigentes, assim como os acordos e tratados subscritos pela República de Angola, nomeadamente junto da União da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, que adotou na sua 65ª sessão ordinária, realizada aos 10 de Novembro de 2019, a Declaração de Princípios sobre liberdade de Expressão e Acesso a Informação em África, sendo esta norma sido recomendada para aplicação de todos estados-membros da União africana.
No Princípio 21° dessa Declaração, relativo à Proteção de Reputações, se decreta que:
- a) Ninguém poderá ser considerado responsável por declarações verdadeiras, expressões de opinião ou afirmações que sejam razoáveis nas circunstâncias.
- b) As figuras públicas são obrigadas a tolerar um maior grau de crítica.
- c) As sanções nunca deverão ser tão severas que acarretem a inibição do direito à liberdade de expressão.
Quanto ao Princípio 22°, relativo às Medidas Penais, espelha que:
1 – Os Estados deverão rever todas as restrições penais de conteúdo, com vista a garantir que sejam justificáveis e compatíveis com o direito e as normas internacionais de direitos humanos.
2 – Os Estados deverão revogar as leis que criminalizem a sedição, o insulto e a publicação de falsas notícias.
3 – Os Estados deverão alterar as leis penais sobre difamação e calúnia em proveito de sanções civis, as quais deverão ser necessárias e proporcionais.
4 – A imposição de penas privativas de liberdade para crimes de difamação e calunia são uma violação do direito à liberdade de expressão.
5 – A liberdade de expressão não deverá ser restringida por razões de ordem pública ou segurança nacional, a menos que exista um risco real de dano a um interesse legítimo, e que exista um nexo casual estreito entre o risco de dano e a expressão.
A situação da prisão dos ativistas reveste-se de um cunho político e não judicial, se nos ativermos aos constrangimentos e impedimentos criados para evitar a sua plena defesa e subsequente soltura. Senão vejamos:
Quando foi ditada a sentença na sala de audiência, no dia 19 de Setembro de 2023, a Juíza, somente mencionou a condenação de três arguidos, referidamente Adolfo Miguel Campos André, Gilson da Silva Moreira, Hermenegildo José Victor André, retirando-se, ato contínuo, da sala de audiência e dirigindo-se para um gabinete, presumivelmente o seu;
Com essa saída intempestiva, a juíza impediu o ato processual de interposição de recurso em sede de julgamento;
Passados mais de quarenta minutos, mandou o escrivão informar aos advogados e aos arguidos que também estava condenado o quarto arguido, Abraão Pedro dos Santos. Deste modo se pode dizer que o quarto ativista teve uma condenação de gabinete.
Quanto aos Requerimentos
Num prazo de cinco dias úteis, deu-se entrada do requerimento para a interposição do Recurso, do requerimento para junção das Procurações Forenses, bem como do pedido da Cópia da Sentença para se sustentar as alegações do Recurso junto do Cartório Judicial da 9° Secção;
Seguidamente deu-se entrada da Reclamação, porque o Processo nunca estava disponível no Cartório para ser consultado pela defesa, e os magistrados não davam despacho ao pedido feito da Cópia da Sentença;
Finalmente, depois de insistência constante por parte da defesa e faltando somente quatro dias para os vinte previstos por lei para interpor recurso, o tribunal decidiu conceder à defesa o acesso ao processo. Foi assim que, no dia 9 de Outubro 2023, dentro dos prazos, se deu entrada às alegações do Recurso;
No dia 27 de Outubro de 2023, apercebendo-se a defesa que a 9ª Secção não remetia o Recurso ao Tribunal Superior, deu-se entrada de uma reclamação por retenção de Recurso junto da secretaria da 9ª secção do Tribunal, para ser remetido, como resulta da lei processual civil, ao tribunal imediatamente superior ao que proferiu a decisão, no caso, o Tribunal de Relação.
Infelizmente, tal não aconteceu, pois a juíza posicionou-se de forma petulante e irredutível, forçando a defesa a endereçar o mesmo requerimento ao Juiz Presidente da S. C. C do Tribunal de Comarca de Luanda, no dia 17 de Novembro de 2023.
No dia 8 de Dezembro de 2023, procurou-se o Processo junto da Secretaria Judicial do Tribunal Dona Ana Joaquina para consulta, tendo recebido a informação de que o processo não constava do livro de registo. Fez-se cópia do protocolo e pediram alguns dias para solucionar a questão.
No dia 13 de Dezembro de 2023, voltou-se a tentar e, aí, a informação coletada foi a de que o processo estava desaparecido e que outro processo seria instruído. Horas depois, esta informação foi retificada, confirmando-se que o processo se encontrava, ainda, no Cartório da 9° Secção.
No dia 8 de Janeiro de 2024, com base no direito do arguido ser assistido por um advogado, tendo este a faculdade legal de consultar o processo e até pedir a confiança, voltou a tentar-se fazer a consulta do Processo junto da Secretaria Judicial. Ali, colheu-se a informação de que não havia nenhuma novidade pois a 9° Secção não havia apresentado o relatório anual dos processos, tendo se aconselhado que apenas se consultasse o processo entre os dias 4 e 5 de Março após o término das férias judiciais.
Até a presente, pelo que se sabe, somente a 9ª Secção do Tribunal da Comarca de Luanda, onde se encontra retido o processo dos activistas não entregou o relatório dos processos em sua posse aos serviços correspondentes, para avaliação.
Sendo direito, sabendo-se que da prisão ilegal, e da sentença infundada e sobretudo das manobras para manutenção da prisão irregular, no dia 31 de Janeiro de 2024, a defesa ainda avançou com a providência do habeas corpus, cuja resposta, segundo reza o ponto 5 do art.292º do Código do Processo Penal, deveria ter merecido decisão num prazo não superior a 5 dias úteis. No momento em que se encerra esta reclamação, dia 26 de fevereiro, acabou de se saber da secretaria judicial do Tribunal Dona Ana Joaquina, 9ª secção, que não há qualquer reacção a esse pedido.
Para que se comece a inverter a imagem e o manto pesado de suspeição sobre o nosso sistema de justiça, não se deve continuar a mostrar leniência com este tipo de “erros processuais”, pelo que se pede aqui a anulação dessa sentença estapafúrdia, a colocação dos 4 activistas em liberdade incondicional e a abertura de um processo de averiguação dos factos aqui narrados que, espera-se, culmine em afastamento compulsivo de uma juíza que desonrou a casta.