CAMPO DA MORTE: CASO N.º 28: O ÚLTIMO CHARRO

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VÍTIMAS: Adelino Alfredo Cambeu; Miguel Arcanjo, 21 anos, natural do Huambo; Severino Condengo da Silva “Yuri Pi”, 19 anos, natural de Luanda

DATA: 20 de Janeiro de 2017

LOCAL: bairro do Compão, município de Cacuaco

OCORRÊNCIA:

Miguel preparava-se para jantar, por volta das 19h00, quando um dos amigos, Adelino Cambeu, lhe bateu à porta para irem fumar um charro no beco. Juntaram-se-lhes Yuri Pi e Cassule. O último, segundo consta dos depoimentos recolhidos no local, tinha ido devolver uma caixa de fósforos emprestada quando se cruzou com o grupo que mataria os seus amigos.

Adelino Cambeu encostara-se ao muro para urinar e foi o primeiro a ser atingido com dois tiros na cabeça. A seguir foi o Miguel… Cassule conta que ouviu Yuri a implorar para que não o matassem, depois de ter sido atingido no peito. Em resposta, um dos matadores atingiu-o com mais tiros. Ao todo, segundo a irmã Marta Silva, Yuri foi morto com cinco tiros no peito e na região abdominal.

Por volta das 22h00, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) procedeu à recolha dos corpos e chamou as famílias para identificação das vítimas. “Eu fui falar com eles para identificar o meu irmão e disseram-me para ir embora porque já tinham ‘os nomes desses delinquentes’”, conta Marta.

“O SIC deixou um papel na morgue [do Josina Machel], com os nomes dos rapazes que abateram na nossa zona, nesse dia. O nome do Yuri não constava da lista que vimos. O investigador do SIC que encontrámos lá disse-nos: ‘Afinal o cobarde tinha um nome diferente?’ Foi assim que percebemos que eles matam à toa. Na lista estavam os nomes do Bebu, do Miguel, do Adelino e mais dois [desconhecidos].”

Um dos operacionais do SIC que se encontravam no local, e que se conhece apenas pelo nome de Chalana, perguntou à família: “Estão a reclamar porquê? O vosso filho é gatuno”, cita a irmã.

Para afastar Yuri da má vida, a mãe tinha-o entregado aos cuidados da sua irmã, residente no bairro do Paraíso. No dia da sua morte, “a tia Justina [com quem vivia] disse-lhe para não sair de casa porque estava com o coração apertado. O Yuri tinha recebido um telefonema para ir ao bairro e saiu às 6h00”, conta Marta.

“Passou o dia todo connosco. Por volta das 18h00, o meu primo Emílio veio e sentámo-nos em família. Pedimos-lhe para arranjar um emprego para o Yuri na empresa onde trabalha. Ele indicou quais eram os documentos necessários”, explica a irmã.

A seguir à conversa, Yuri foi tomar banho e pouco depois surgiu o seu amigo Adelino, que o convidou para sair. Minutos mais tarde (entre as 19h00 e 19h10), a família ouviu os tiros e o “primo Emílio regressou com as mãos na cabeça. O Yuri estava morto, ao lado do portão dele”, recorda Marta.

Em Dezembro passado, Yuri esteve detido na Esquadra do Cauelele por suspeita de tentativa de assalto à residência de um vizinho. “O Ti Bula [vizinho] veio à nossa casa buscar o Yuri. Foram à Esquadra do Cauelele.

Ele queria limpar o seu nome e foi detido porque era inocente do crime que o acusavam”, conta.

O investigador, de forma inusitada, pediu à família de Yuri que encontrasse a queixosa, uma vizinha que vira a tentativa de roubo e identificou três jovens, mas que entretanto saíra do bairro.

Marta da Silva explica que um dos jovens, já detido, indicou o nome do seu irmão “porque os amigos dele o ameaçaram de que matariam o seu pai se ele os denunciasse e por causa da tortura da polícia”.

Durante uma semana, a família procurou pela vizinha noutros bairros, seguindo pistas de vizinhos e familiares, para provar a inocência de Yuri.

Quando a encontraram, levaram-na até à esquadra, onde, alegadamente, ela revelou que também estava sob a ameaça de outros dois jovens e inocentou Yuri.

“A polícia disse-nos então que, como o meu irmão era inocente, nós tínhamos de pagar 50 mil kwanzas para ele ser libertado, senão iriam encaminhá-lo para a Comarca Central de Luanda”, revela Marta Silva. Após pagamento, Yuri foi libertado, a 17 de Dezembro de 2016.

“Só ouvia dizer que o meu irmão ‘mexia’ [assaltava]. Mas esta foi a única vez em que ele esteve detido”, conclui a irmã.

Sobre o Miguel, vários vizinhos testemunharam que era um jovem muito calmo, cujo crime maior era o hábito de fumar liamba.

 

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais

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