ANGOLA: OLHANDO O FUNDO DO ABISMO

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Carlos Pacheco
Carlos Pacheco

A justiça em Angola continua a fazer-se com base nos mesmos subterfúgios do passado. Ou seja, por ostentação unicamente para justificar o guião político do presidente da República.

Que o país está atolado em grandes males é uma realidade perceptível aos olhos das inteligências mais meridianas, todavia não vejo em João Lourenço um estadista conspícuo, em cujo arcabouço se divise o talento e as virtudes necessárias para empreender a cura do corpo doente do país.

Os crimes do MPLA e dos seus governos são inúmeros, apesar da obstinação dos seus dirigentes em apagá-los. São crimes que preenchem um largo historial e se traduzem em péssima governação e em violações permanentes aos mais precípuos direitos individuais e colectivos inscritos na Lei Fundamental. Crimes que perduram desde o consulado de Agostinho Neto. Com a particularidade de o sistema de governação ter sido sempre o mesmo, petrificado na lógica da supremacia das elites sobre o resto da comunidade nacional. Jamais existiu um plano sério de melhoramento social. Mais de 80% da população vive presa a uma espiral de carências medonhas. Um inferno para elas. Falta-lhes tudo: habitação condigna, suficiência alimentar, saneamento básico, saúde pública integral que lhes garanta serviços de qualidade e medicamentos; políticas de educação e prevenção das doenças e uma rede inteligente de escolas e um ensino sério e qualificado a todos os níveis. O analfabetismo e a iliteracia são assustadores.

A situação global do país, na verdade, é francamente deprimente. Para não dizer escandalosa. As elites na sua inépcia e vaidade só pensam no seu medíocre bem-estar. Angola apodrece num monturo de misérias e João Lourenço ao leme do Poder Executivo somente se preocupa em mostrar (e declarar além-fronteiras) que as cinzas da derrocada são obra de uma facção e de um seu caudilho, como se ele, um velho senhor do aparelho do MPLA e das estruturas centrais da administração do Estado, não fosse parte dessas ruínas e também seu responsável; ou ainda responsável pelas infracções repetidas que se cometeram todos estes anos contra o primado das leis. De José Eduardo Santos ele recebeu uma generosa protecção e do velho presidente recebeu o bastão de confiança com que foi investido nos mais altos postos da governação, das Forças Armadas e do Partido.

Muita intolerância política e ideológica tem sobrado nos governos do MPLA, a par de muita incompetência e torpezas de ministros e outras hierarquias de escalão inferior. Basta ver os homens que têm passado pelas instituições. Todos sufragados pelo Partido. À excepção de dois ou três exemplos de distinção e discernimento ante os gravíssimos problemas do país, o resto é uma calamidade. Como figuras públicas, nenhum desses homens deixou boas lembranças, a não ser o que subsiste de pior em matéria de carácter e competência técnica. Qualquer um deles, moldado no barro da politiquice e da intriga, limitou-se a encher os gabinetes ministeriais e os palanques da política com gestos imbecis, de mistura com a mais repugnante subserviência e docilidade ao Chefe. Verdadeiras manchas no decoro da administração pública. Se deram largas ou não à sua gula sobre os dinheiros do Estado, só o tempo o dirá.

Pouco mudou em Angola. Governou-se (e ainda se governa) pela ameaça, pelo cutelo da arbitrariedade e pela ponta das espingardas. Nunca houve no MPLA, e por extensão nas estruturas do Estado, diversidade de opiniões e qualquer análise ou interpretação feita à margem dos cânones do Partido os inquisidores-mores logo tratavam (e tratam) de a sufocar sob uma torrente de advertências. É o que eu chamo o método intimidante do «cala a boca!». Eu próprio fui alvo deste vexame numa reunião partidária presidida por Lúcio Lara no DOM-Regional (bairro do Rangel), pelo simples facto de ter questionado o centralismo democrático no MPLA. Considerei-o um instrumento orgânico de robotização que restringia não só a independência dos militantes no uso da razão, mas também a integridade dos seus julgamentos. Contudo, este fenómeno não se confinava às muralhas do MPLA. Até nos serviços públicos este mal se incrustou (e ao que parece resiste até aos nossos dias) com o Partido sempre presente a impor o seu Evangelho e a fazer vergar as inteligências aos seus mandatos.

Não poucas vezes testemunhei expressões de indignação em ministros e outros responsáveis, e até mesmo em jornalistas, que pagaram o preço de serem humilhados nos respectivos cargos pela audácia das suas apreciações críticas. Quer dizer, perseguiram-se homens bons e confiou-se o ceptro do mando a uma fauna de escroques e fanfarrões emplumados com as cores do Partido. Agora aparecem oráculos e escribas às dúzias a injectar na psique de um país assombrado por tantas desgraças a crença de que João Lourenço, um velho dinossauro do Partido, veio para promover a redenção nacional e que a abastança colectiva não tardará a despontar no horizonte. O fim da corrupção representará o mais seguro capital das belas ilusões.

Não vejo nenhum fulgor de esperança e recuperação nas iniciativas políticas de João Lourenço com o seu dilúvio de nomeações e exonerações, tal como já não via nas iniciativas de José Eduardo dos Santos. Dizia um escritor público português do século XIX que o povo não oferece medalhas porque não as tem, mas falando por mim, se as tivesse, jamais as outorgaria a este novo ungido salvador da pátria. O senhor general, rodeado por uma turba de novos (e velhos) cortesãos do MPLA, vai fazendo singrar as naus do Governo e do Partido (uma e outra confundidas entre si) ao capricho de quimeras propagandísticas e ancorado em argúcias que se prestam a grandes controvérsias. Duas dessas argúcias relacionadas com o 27 de Maio já mereceram da minha parte a devida refutação.

O programa vitorioso de João Lourenço nas urnas foi o combate à corrupção. Nesta perspectiva, que passos se deram? Prendeu-se um filho de José Eduardo dos Santos e mais duas ou três pessoas pertencentes à órbita desta família. No mais, fala-se insistentemente em acções extra-fronteiras com a finalidade de descobrir a falange de prevaricadores que extorquiu o país, o seu povo e as instituições. Inclusive fala-se em acções de parceria com o FBI, a polícia federal norte-americana. Estarrecedora esta parceria, pois sabemos até onde chega o braço americano e a destruição que promove nos pilares da soberania de outros países.

Para um regime político que se desvirtuou pela corrupção e solapou as riquezas de Angola no transcurso de décadas, não deixa de ser irónico observar João Lourenço de dedo alçado a acusar o ex-presidente e a sua família, quando ele próprio conviveu lado a lado com o sistema de corrupção dentro do Partido-Estado; um sistema tão velho quanto o tempo dos seus serviços nas esferas do poder civil, militar e partidário. Ora se o general, hoje sentado no trono, nos quer convencer que está a dar os passos certos no caminho da salvação da economia e do dever de promoção da justiça para toda a sociedade, ou que as suas razões são convincentes e os seus actos iluminados pela isenção, eu respondo ter sérias dúvidas.

Desde os círculos de opinião mais abalizados do país até ao homem da rua todos se espantam de ver corruptos de fama a serem tratados como honestos, enquanto outros, sem nenhum sentido de justiça, são acorrentados e expostos à abjecção pública. De modo a possibilitar a prisão dos acusados, atropelaram-se as normas constitucionais e perverteu-se todo o sistema de justiça. Quer dizer, condenaram-se à perdição moral algumas pessoas por delitos mal explicados e simultaneamente esconde-se o rosto de outros que cometeram graves perversões contra o país e sequer são pronunciados pelos órgãos superiores de Justiça. A impressão daqui decorrente é que se exercita o vigor da lei não contra todos, a justiça continua a fazer-se com base nos mesmos subterfúgios do passado. Ou seja, por ostentação unicamente para justificar o guião político do presidente da República.

(continua)

Fonte: Público

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