Carta aberta das organizações da sociedade civil angolana sobre os gastos públicos no jogo Angola vs Argentina

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As organizações da sociedade civil abaixo assinadas vêm, por meio desta Carta Aberta, expressar profunda indignação e séria preocupação com a forma como os recursos públicos estão a ser geridos em Angola, especialmente perante os elevados gastos destinados ao jogo amistoso entre as seleções de Angola e Argentina e à reabilitação do Estádio Nacional 11 de Novembro.

Segundo informações divulgadas, o Estado angolano terá gasto entre US$ 10 e 12 milhões para assegurar a presença da seleção argentina em Luanda, somados a aproximadamente US$ 13,6 milhões investidos na segunda fase das obras de requalificação do estádio.

O montante total estimado — superior a US$ 25 milhões — esbarra de forma flagrante com a grave realidade socioeconómica que o país enfrenta.

1.Um país em crise social

Os dados oficiais e de organismos internacionais revelam:

  • O World Food Programme (WFP) estima que metade dos angolanos vive com menos de US$ 3,65 por dia.
  • O Índice Global da Fome de 2025 coloca Angola entre os 13 países do mundo com maior nível de fome, sendo o pior entre os países lusófonos.
  • Aproximadamente 47,7% das crianças sofrem de atraso no crescimento, e mais de 22% da população está subnutrida.
  • Milhares de crianças encontram-se fora do sistema de ensino, e muitas famílias vivem em condições de extrema vulnerabilidade, incluindo a recolha de lixo para procura de alimento.
  1. Prioridades invertidas e falha na transparência

Num país onde o salário mínimo oficial é de 100.000 kwanzas (equivalente a cerca de 109 dólares norte-americanos), e onde uma parte significativa da população continua a receber menos do que esse valor, enquanto os serviços públicos essenciais — como saúde, educação e saneamento — permanecem profundamente degradados, gastar dezenas de milhões de dólares em eventos meramente simbólicos representa uma inversão grave das prioridades nacionais.

Tal prática constitui uma afronta aos princípios de justiça social, responsabilidade pública e boa governação, demonstrando um profundo descompasso entre as decisões políticas e as reais necessidades do povo angolano.

3.Fundamento jurídico-legal e compromissos internacionais

Para além do aspecto moral e de facto, importa sublinhar que esta situação entra em conflito com normas jurídicas nacionais e internacionais às quais Angola aderiu: a) Quadro legal interno

  • Lei n.º 11/25 – Regime Geral dos Fundos Públicos, de 2 de Outubro de 2025, define que os fundos públicos só podem ser criados por despacho do Presidente da República acompanhado de relatório justificativo de necessidade e de viabilidade técnica e económica, observando os princípios de eficiência, transparência e sustentabilidade.
  • Lei da Probidade Pública – Lei n.º 3/10, de 29 de Março de 2010, regula os deveres, responsabilidades e obrigações dos agentes públicos em relação à moralidade, imparcialidade, probidade e respeito pelo património público. b) Compromissos internacionais
  • Angola é Estado parte do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e comprometeu-se a adotar medidas concretas para a realização dos direitos à saúde, educação e padrão de vida digno, devendo aplicar os “máximos recursos disponíveis”.
  • Organismos internacionais, como o FMI e o WFP, reforçam que Angola deve garantir transparência e participação cidadã na gestão dos recursos públicos. c) Conclusão jurídica Dado o exposto, há base para afirmar que os elevados custos do jogo e das obras de requalificação contrariam não só juízos éticos e sociais, mas também normas positivas de boa governação e obrigações de priorização de recursos para direitos fundamentais.

4.As nossas exigências

Face ao exposto, as organizações signatárias apelam com urgência às autoridades competentes para que:

  • Garantam transparência total sobre todos os custos, contratos, aditamentos ou avenças relativas ao evento e às obras, disponibilizando estudos de viabilidade, deliberações e relatórios auditados.
  • Reavaliem as prioridades orçamentais, orientando recursos para educação, saúde, segurança alimentar e habitação digna.
  • Implementem mecanismos independentes de auditoria e promovam a participação cidadã na gestão, aplicação e fiscalização dos fundos públicos.
  • Reafirmem o papel do desporto como instrumento de coesão social e inclusão — e não como símbolo de luxo ou de prestígio em meio a grave miséria.

Reafirmamos o nosso compromisso com uma Angola mais justa, transparente e democrática, onde os investimentos públicos sejam guiados pelo interesse nacional e pela dignidade humana — e não por decisões políticas de espetáculo.

Organizações Signatárias: Associação Luterana para o Desenvolvimento de Angola – ALDA Associação Omunga Organizada pelo Observatório para a Coesão Social e Justiça Associação UYELE Friends of Angola (FOA) Anexo: Referências Legislativas, Normativas e Relatórios

  1. Legislação Nacional de Angola
  • Lei n.º 11/25 – Regime Geral dos Fundos Públicos, de 2 de Outubro de 2025.
  • Lei da Probidade Pública – Lei n.º 3/10, de 29 de Março de 2010.
  1. Compromissos Internacionais
  • Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
  • Recomendações de organismos internacionais (FMI, WFP) sobre transparência e boa governação.
  1. Aplicação e relevância
  • A conjugação das leis nacionais e dos compromissos internacionais reforça que grandes investimentos públicos devem ser justificados, transparentes e submetidos à auditoria externa, e que a prioridade dos recursos deve ser a satisfação das necessidades básicas da população.

Radio Angola

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