SINTOMAS E DELÍRIOS DE UMA SOCIEDADE PROFUNDAMENTE DOENTE
Fonte: Nuno Álvaro Dala
A sociedade angolana está doente. E está-o há tempo considerável.
Para provar a asserção acima expressa apresentarei aqui três casos exemplificativos.
1. O CASO DO EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA: nos últimos anos da sua governação, José Eduardo dos Santos (JES) passou por diversos problemas de saúde, que, a dada altura, o deixaram mais próximo da morte do que da vida. Em finais de Abril de 2017, JES sofreu um acidente isquémico cerebral transitório (AICT), em consequência da embolização de metástase do cancro da próstata de que padece. No primeiro trimestre do mesmo ano, José Eduardo dos Santos não conseguiu dirigir uma reunião do Conselho de Ministros por ter desmaiado em plena sessão. Em finais de 2016, JES desmaiou durante as exéquias do seu irmão mais velho (Avelino dos Santos). Em finais de 2013, José Eduardo dos Santos sofreu uma crise prostática renal (CPR), que o fez ser evacuado às pressas para a Espanha. O Presidente acabou ficando dois meses ausente do País. Em todas as situações acima referidas, milhares de cidadãos manifestaram o desejo ardente de que JES morresse. Outros milhares debocharam da sua situação de doente e fizeram todas as piadas possíveis para expressarem o quanto desejavam que ele desaparecesse.
2. O CASO DO EX-MINISTRO DO ENSINO SUPERIOR: a 12 de Dezembro de 2018, o antigo ministro do Ensino Superior, Adão do Nascimento, «foi encontrado morto num quarto de hotel» na cidade de Maputo, Moçambique. Os dias que se seguiram à sua morte foram marcados por especulações que insinuavam que ele morrera em consequência de um colapso que o acometeu quando se encontrava a ter relações com uma jovem moçambicana. «O ministro não aguentou a pedalada da jovem», «o ministro morreu na profissão», «a dose de Viagra foi demasiada e por isso morreu», «ele era velho, não estava mais em condições de aguentar a pujança da jovem». Estas e outras afirmações de deboche inundaram o Facebook por dias e semanas.
3. O CASO DA EX-MINISTRA DA ACÇÃO SOCIAL, FAMÍLIA E PROMOÇÃO DA MULHER: a 3 de Janeiro do novo ano (2019), Victória Correia da Conceição deu entrada na Clínica Girassol, em estado crítico, ferida em consequência de uma alegada tentativa de suicídio depois que tomou conhecimento da sua exoneração do cargo que ocupou por mais de um ano, o de Ministra da Acção Social, Família e Promoção da Mulher. Os dias seguintes aos factos têm sido marcados por uma espantosa onda de manifestações de insulto à situação em que se encontra a senhora, de desejo de que morra e, pasme-se, de deboche ao alegado facto de ser tão incompetente ao ponto de ter falhado em atirar contra si mesma. Outros cidadãos deliberaram que todos os governantes do MPLA devem seguir o exemplo da ex-ministra.
Os três casos são demonstrativos do estado de patologia que afecta a generalidade da sociedade angolana.
Fazer piadas ácidas sobre as patologias de José Eduardo dos Santos, manifestar em textos a vontade de o mesmo estar morto ou ainda debochar da sua situação de idoso doente ou com saúde fraca indica de forma clara que a sociedade angolana está profundamente doente. Os cidadãos chegaram ao ponto de tratar JES como carcaça humana.
Os cidadãos chegaram ao ponto de celebrar a morte do antigo ministro como romance.
Adão do Nascimento ficou reduzido a um mero «degustador de carne jovem», que morreu por ser um «velho sem juízo». Quase ninguém se dignou em investigar as razões que o levaram à morte. A dor da família foi completamente ignorada. De repente, quase todos os homens estavam apenas interessados em saber da «moçambicana que fez tombar o velho Adão», em analisar e avaliar a qualidade dos peitos, pernas e outras partes ou membros do corpo dela que teriam deixado o antigo ministro em êxtase. Para a maioria, a morte de um angolano no estrangeiro e naquelas circunstâncias não interessava. No meio de todo aquele circo de humor horroroso, a dor da família não foi respeitada.
A ex-ministra tem sido retratada como a senhora patologicamente apegada ao poder, que não suportando a exoneração, preferiu o suicídio. Os cidadãos não se esforçam em analisar a situação com frieza, objectividade, profundidade e, acima de tudo, humanismo. É confrangedor e constrangedor o facto de haver uma tremenda insensibilidade pública. O deboche geral à ex-ministra e à sua situação crítica demonstram a ausência de uma solidariedade baseada na compreensão segundo a qual nós somos porque os outros são (ubuntu). A senhora tem idade de ser mãe de milhares dos muitos cidadãos que movimentam a desprezível onda de celebração pela desgraça da cidadã em referência e desrespeito à dor da sua família. E, certamente, ninguém gostaria de ver a sua mãe a ser tratada como uma desalmada desgraçada mentalmente perturbada.
A celebração da desgraça alheia revela que os Angolanos foram derrotados pelo ódio.
José Eduardo dos Santos levou a cabo uma governação nefária, caracterizada pela corrupção, pelo saque do erário, pelo tráfico de influências, pelo abuso de poder, pela impunidade e por muitos outros males que conduziram Angola ao marasmo económico, social, político e até mesmo cultural. Ele e seus partidários comportaram-se como os grandes algozes de um processo de destruição do tecido humano angolano.
O grau de destruição da alma angolana foi de tal magnitude, que desapareceu em grande parte dos Angolanos a capacidade de tratar os algozes com humanismo (sem prejuízo da memória e da justiça).
É compreensível que haja revolta generalizada. Uma revolta silenciosa. Afinal, em vez de usar a fabulosa riqueza adveniente da indústria do petróleo para a generalização do bem-estar social doa Angolanos, José Eduardo dos Santos preferiu promover o enriquecimento pornográfico dos seus partidários.
A corrupção, o tráfico de influências, a subversão da justiça e outros males, como a guerra, reduziram a maioria dos Angolanos a farrapos humanos.
Os traumas são diversos e enormes. As causas também. Precisamos de catarse. De uma catarse real, aliás.
Repito e reitero o que disse acima: é compreensível que haja revolta generalizada. É compreensível que milhões de Angolanos tenham desenvolvido um ódio mortal por José Eduardo dos Santos e seus partidários.
Mas, se de facto compreendemos como Povo que é necessário participarmos todos na construção de um País novo, como isto será possível se não somos capazes de gerir o ódio que nos corrói e suas diversas manifestações?
De que modo o ódio que nos corrói ajudar-nos-á a superar os terríveis traumas físicos, económicos, sociais, culturais e espirituais que estão encravados na sede da alma de cada Angolano que foi vítima de José Eduardo dos Santos, seus partidários e respectiva máquina opressiva?
Não é o ódio um fardo demasiado pesado para carregarmos?
Eu próprio fui diversas vezes vítima do regime do MPLA. Sofri bloqueios, boicotes e perseguições. Acabei até preso, julgado e condenado por um crime fictício. As consequências psicológicas em mim e em cada um dos outros integrantes do Processo 15+2 são tão grandes e complexas, que posso afirmar com segurança que a sociedade angolana na verdade tem apenas uma simplória noção dos terríveis traumas físicos, sociais, económicos e, principalmente, psicológicos, os quais levarão muitos anos e até mesmo décadas. Outros traumas talvez nunca venham a ser superados.
Para sobreviver às incontáveis peripécias do Processo e dos muitos problemas que emergiram depois do regresso à liberdade, tive de me libertar do ódio, pois o mesmo bloqueia a fluência das energias na alma e do processo de reencontro da pessoa consigo mesma e com os outros. O ódio também dificulta grandemente enxergar Angola além do horizonte imposto pela governação aprisionadora levada a cabo pelos algozes do MPLA.
Preferi me libertar do ódio para (voltar a) ter a alma leve e seguir em frente.
O ódio pelos algozes do MPLA deve(ria) dar lugar à indulgência, e esta deve(ria) levar à recuperação do humanismo que nos faz seres dotados de valores e sentimentos nobres.
Obviamente, cada Angolano deve decidir entre (1) continuar a ser mera vítima reaccionária de um grupo de predadores que hoje está preso nas teias complexas resultantes de décadas de cultivo do mal e (2) superar-se e libertar-se do ódio, pois, afinal, há toda uma vida pela frente e fazer de Angola um país melhor não é impossível.