SG-SJA: “O Parlamento está a interpretar muito mal as normas que ele mesmo aprovou”

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O Sindicato dos Jornalistas Angolanos declarou guerra aberta àquilo que chama de censura na Assembleia Nacional. A primeira sessão plenária de 2018 está sujeita a um boicote que o secretário-geral do órgão, Teixeira Cândido, afirma visar a defesa dos interesses da classe. Uma campanha contra a censura é lançada nos próximos dias.

Fonte: Novo Jornal

O boicote às sessões plenárias que o SJA prometeu levar a cabo agora em 2017 só peca por ser tardia, na sua opinião? 

Na verdade, o Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) entendeu que, antes de partir para uma medida como esta, era preferível fazer as diligências que se impunham, porque poderíamos eventualmente não ter autoridade, fundamentalmente autoridade moral, para esta posição que estamos a tomar agora, se não tivéssemos antes feito as diligências que fizemos. E as diligências que fizemos têm que ver com abordar o presidente da Assembleia Nacional, primeiro, e depois abordar as outras entidades auxiliares que trabalham na própria Assembleia Nacional para lhes fazer ver que a situação a que estavam sujeitos os jornalistas angolanos era uma clara violação à liberdade de imprensa, era uma clara censura. Fizemos chegar esta preocupação ao presidente da Assembleia Nacional, inclusive no último ano em que a Assembleia trabalhou nas antigas instalações, o presidente da Assembleia garantiu-nos que quando se transferisse para as novas instalações os jornalistas teriam liberdade de trabalhar como deve ser. O certo é que não, o certo é que os jornalistas estão confinados a um compartimento, a uma sala a partir da qual fazem a cobertura…por exemplo, quando há uma discussão, ou um projecto de lei, por exemplo, no final da qual os jornalistas não sabem ao certo qual foi o partido que votou a favor, qual que se absteve e qual votou contra.

Ou seja, o certo é que há um retrocesso em relação àquilo que acontecia no Palácio dos Congressos?

É um retrocesso tremendo… Não sei quem foi o arquitecto desta ideia, porque os jornalistas sempre tiveram acesso à plenária da Assembleia Nacional e não consta que alguma sessão tivesse parado, não consta que uma sessão tivesse sido interrompida porque um jornalista se tivesse comportado mal.

E isso não teria sido a priori razão suficiente para que o Sindicato ou a própria classe usasse das prerrogativas que a Constituição confere a qualquer angolano e não ter esse cuidado de fazer uma jogada de compensação mas agir logo?

O que nós fizemos é que se há um problema entendemos que o razoável era abordar as pessoas, os responsáveis,
para tentarmos solucionar sem esta pressão pública que nós fazemos hoje.

«Nós somos uma força de pressão, e “estamos legitimados quer pela Constituição quer pela Lei de Imprensa e quer pela lei sindical»

Mas não acha que esta abordagem levou tempo de mais para se obter uma resposta? 

Compreendo que o Sindicato não tinha necessidade abordar [a Assembleia Nacional] porque entendo que o Parlamento enquanto órgão representativo da democracia, enquanto órgão que faz, fundamentalmente por excelência, leis tem a responsabilidade de saber que, primeiro, a Constituição estabelece a liberdade de
imprensa, e há uma Lei de Imprensa que estabelece o acesso às fontes de informação. A Assembleia Nacional devia ter este cuidado de o fazer. Ora, não tendo a Assembleia Nacional respeitado legislação nenhuma, entendemos que devíamos fazer recordar o presidente do Parlamento que temos uma Lei de Imprensa que consagrada o acesso às fontes de informação e que este acesso não deve ser condicionado nos termos em que a Assembleia estava a condicionar o nosso trabalho.

O Parlamento apresenta como argumento de razão uma norma. Limita-se a dizer que só está a fazer cumprir a norma, dando inclusive a ideia de que os jornalistas se recusam a cumpri-la. 

Esta norma de que a Assembleia Nacional fala está no regimento interno do Parlamento. Estamos a falar do artigo
183, que diz que as instalações da Assembleia Nacional devem reservar lugares para os representantes dos órgãos
de comunicação social credenciados para funcionar lá. Ora, esta norma não diz que os jornalistas devem fazer a cobertura das sessões plenárias a partir de um compartimento. E vamos conjugar o artigo 183 com o 123 da Assembleia Nacional que fala das restrições ou sobre a proibição… Diz que é proibida a presença de pessoas estranhas apenas nos lugares reservados aos deputados, nos assentos. Só a parte do hemiciclo é que está restrita a pessoas que não estejam a trabalhar, atenção, porque um operador de câmara, um fotógrafo que está no exercício da sua actividade obviamente que vai ter que estar lá, mas o jornalista que tem de recolher a informação não precisa necessariamente de estar lá. Há lugares acima do hemiciclo que estão reservados para a imprensa. Conjugando estas duas normas, acabámos por concluir que o Parlamento está a interpretar muito mal as normas que ele mesmo aprovou. Porquê? Porque o lugar a que se faz referência é para que os jornalistas possam complementar o seu trabalho, é uma espécie de sala de imprensa, a partir da qual os jornalistas podem preparar os seus trabalhos para difundir, quer os colegas que trabalham para rádio, quer os que trabalham para a imprensa escrita. Eu posso não querer ir para a minha redacção, agilizar o problema, ir para a sala reservada à imprensa, fazer o meu texto e a partir daí enviá-lo para a minha redacção. Quem, por exemplo, entende que quer fazer uma emissão em directo, para os colegas que trabalham para a TV, posso levar o repórter a fazer a maquiagem naquela sala e depois o colega apresentar o seu trabalho. Portanto, esta sala é reservada para os jornalistas fazerem o seu trabalho. É uma espécie de redacção.

«Dentro da casta de jornalistas de referência […] aí tem muitos interesses, que às vezes se confundem com interesses partidários […]»

A reacção que sentiu até hoje da classe de jornalistas não teria deixado o sindicato numa situação de quase isolamento? 

Felizmente a classe está solidária…

Não lhe parece que há uma reacção isolada e não de modo uníssono e inequívoco da parte da classe de jornalistas? 

Temos de fazer uma análise muito realista da nossa classe. Estamos a mobilizar-nos hoje porque entendemos que estamos a lutar pelos mesmos objectivos. Até então não foi assim. Havia uns que eram muito mais cidadãos do que os outros, havia uns que se apresentavam como sendo mais moderados do que os outros, havia ainda outros que pareciam mais patriotas do que os outros. Houve, na realidade, uma espécie de infiltração de pessoas que, não estando ao serviço do jornalismo, estavam no seio dos jornalistas não necessariamente para fazer jornalismo. A designação, a bipartição, que temos entre os jornalistas da imprensa privada e da imprensa pública é um pouco resultado deste problema que vamos vivendo.

Estamos a falar dos jornalistas políticos?

Dos jornalistas políticos, dos jornalistas militantes, tudo isso… E tudo isso impedia que a classe agisse de maneira unânime, de maneira unívoca. Portanto, a classe não fez exactamente por isso. Estamos agora a mobilizarmo-nos para passarmos a colocar os nossos problemas numa cadeia só. Até então não havia este
problema.

O sindicato assume o seu papel enquanto força de pressão?

Sim. Nós somos uma força de pressão, e estamos legitimados quer pela Constituição quer pela Lei de Imprensa e quer pela lei sindical a defender os nossos interesses. E estamos nesta condição, nós somos um grupo de pressão exactamente para defender os nossos interesses…Isto que estamos a fazer agora, que tem que ver com os maus-tratos de que estão a ser sujeitos os nossos colegas na Assembleia Nacional, é na realidade uma pressão.

«Não tendo a Assembleia Nacional respeitado legislação nenhuma, entendemos que devíamos fazer
recordar o presidente do Parlamento que temos uma Lei de Imprensa»

Como é que o Sindicato vai manter o estatuto de força de pressão tendo no seu seio todos esses vírus, desde jornalistas militantes a jornalistas políticos? 

O Sindicato entende que aqueles que de facto se identificam como sendo jornalistas e aqueles que estão efectivamente ao serviço da causa do jornalismo estes, sim, vêm connosco.

E estes são a maioria?

Entendo que hoje por hoje, porque as redacções, felizmente, são maioritariamente preenchidas por jovens estes, sim, felizmente estão connosco. Mas dentro da casta de jornalistas de referência, estes não, aí tem muitos interesses, que às vezes se confundem com interesses partidários, políticos, porque muitos deles se perfilam, são os futuros gestores, estes preferem estar distante do Sindicato. Mas não estamos preocupados com estes, estamos preocupados com aqueles que na verdade estão ao serviço do jornalismo.

 

«Os media não deviam depender da boa vontade do PR»

Não é entendimento do Sindicato que esses direitos, como é o caso da cobertura de imprensa no plenário da Assembleia, tivessem de ser alcançados por meio de uma certa consignação do poder político? 

Não. A liberdade não é gratuita, nunca foi gratuita em parte nenhuma. Há muita gente que entende a independência dos órgãos de comunicação social é concedida por consignação. Eu não tenho este entendimento, e nunca tive. De tal sorte que, ao contrário de muitos colegas que hoje vão festejando o advento da liberdade e da independência dos órgãos públicos, nós temos uma outra leitura. A nossa leitura é que não podemos festejar esta liberdade que os órgãos de comunicação públicos vão manifestando porque ela não é sólida, não é estruturada. E porque é que não é estruturada? Se nós dependemos de um Presidente da República, se nós dependemos de um ministro da Comunicação Social que diga assim: “Ok, façam jornalismo”. Se por hipótese o Presidente João Lourenço não tivesse lançado o tal mote de que os media devem fazer o seu papel, e se o ministro da Comunicação Social não tivesse lançado o repto de que os media devem exercer o seu papel, provavelmente estaríamos a fazer o mesmo jornalismo de há 38 anos.

Aqui provavelmente levantam-se duas questões: uma a tal ideia da liberdade por consignação e a outra da autocensura…

Acho que a autocensura é reflexo de uma cultura instalada nas redacções, nas redacções sobretudo dos órgãos públicos. Ninguém da sua casa e diz que não vou fazer esta peça, porque pode ela causar-me problemas. Quando as pessoas têm a noção de que não vou fazer esta peça porque me pode causar problemas é exactamente porque tem referências e estas referências não as encontram fora da redacção, encontram dentro da redacção.

«Temos de fazer uma análise muito realista da nossa classe. Estamos a mobilizar-nos hoje porque
entendemos que estamos a lutar pelos mesmos objectivos»

E dizer durante um discurso político que façam jornalismo não é de alguma maneira proceder à consignação de uma liberdade fundamental aos jornalistas?

É. Por isso é que eu digo que os media não deviam, em princípio, depender da boa vontade do Presidente da República, tão-pouco do ministro da Comunicação Social. Completamente de acordo consigo. É por consignação. Por isso é que não devemos festejar esta liberdade que os órgãos públicos da comunicação vão manifestando porque é exactamente uma liberdade por consignação. Estamos completamente de acordo. Agora, nós temos de avançar. E qual é o entendimento do Sindicato dos Jornalistas Angolanos? O nosso entendimento é que, para fugirmos desta liberdade por consignação, devemos avançar para um modelo que os outros países já vão ensaiando. Podemos não imitar tal e qual. Por exemplo, quem nomeia hoje os gestores dos órgãos públicos de comunicação nas outras realidades que nos são próximas não é o titular do Poder Executivo, não é o governo, tão-pouco o Presidente da República. Porquê? Porque eles são os sujeitos da nossa actividade. Se são os sujeitos da nossa actividade… Ora, se nós “fiscalizamos” a actividade deles, como é que podemos esperar que eles compreendam permanentemente a nossa actividade? Como é que podemos achar que eles não tenham a tentação de interferir na nossa actividade? Não é possível! Entendemos que era importante encontrar-se uma entidade que esteja fora do Executivo para a nomeação dos gestores dos órgãos públicos.

Seria a Entidade reguladora actual, a ERCA, no caso? 

Poderia ser a ERCA, mas não nos termos actuais, não no formato actual, não com a composição actual, mas com uma composição equilibrada, com uma composição diferente, porque a ERCA que temos hoje é uma extensão dos partidos políticos. Porque é o MPLA que nomeia, é a UNITA que nomeia, porque é a CASA-CE que nomeia, portanto são os partidos que nomeiam. Ninguém pode descurar que os membros da ERCA estão lá porque a origem a partir da qual eles foram nomeados é partidária. E isso não faz sentido. Não faz sentido para uma entidade que se quer independente. Porque é que os partidos políticos é que têm de indicar os membros para a Entidade Reguladora da Comunicação Social se ela é uma entidade técnica, que tem na realidade apenas uma perspectiva de regular o mercado? Não faz sentido. Entendemos que se reformular a actual composição da ERCA, e se os partidos fazem questão que haja lá representantes poderia haver um representante, nós não estamos na necessidade de fazer isso…

«A Entidade Reguladora que temos hoje é uma extensão dos partidos políticos»

Esta reformulação tinha de acontecer a que nível? 

Primeiro tínhamos de olhar para a Lei da Entidade Reguladora. Tinha de haver uma revisão desta lei. E esta revisão
iria acabar com a actual composição… A actual composição é uma extensão do Parlamento, é uma extensão dos partidos políticos, a actual composição não permite que a ERCA seja uma entidade independente…

Olhando para a dimensão do problema que se coloca em relação à censura — esta é a palavra que se está a usar — no Parlamento, o Sindicato equaciona solicitar um encontro com o Presidente da República enquanto Chefe de Estado? 

Se dependesse do Sindicato, já teríamos estado com o Presidente da República. Inclusive o Sindicato fez diligências, escreveu para todos os cabeças-de-lista às eleições na altura para com eles abordar e lhes dar a ver na verdade o problema da comunicação social. Não fomos bem-sucedidos, porque parece que as campanhas não quiseram atender-nos como devia ser. Também escrevemos para o então cabeça-de-lista João Lourenço, e não fomos recebidos. Vamos esperar que o Luís Fernando, que é agora o responsável pela comunicação institucional do Presidente da República, seja capaz, tenha a possibilidade de, pela primeira vez, fazer com que o Presidente da República ouça a classe jornalística.

E este assunto da assembleia nacional seria necessariamente um dos temas a ser levantado?

Sim, porque enquanto chefe de Estado, não tanto enquanto titular do Poder Executivo, é um garante da legalidade, entendemos que é um dos assuntos sobre o qual poderíamos abordar com o chefe de Estado. Mas nós não precisávamos que o Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, interviesse nesta matéria. A Assembleia
Nacional…

Porquê exclui-lo enquanto titular do Poder Executivo?

Não é que estejamos a excluir, seria na verdade um privilégio para a classe reunir com o Presidente da República, não apenas para lhe apresentar este problema sobre a Assembleia Nacional, que não é o único, como também para lhe transmitir que temos tido muita dificuldade de acesso às fontes de informação em quase todas as instituições. E quase todas as instituições jornalísticas reclamam. Fazer um contraditório é complicado. Grande parte do jornalismo que fazemos é um jornalismo administrativo. O que chamamos de jornalismo administrativo? Os gabinetes de comunicação fazem as notas de imprensa ou fazem os convites e nós vamos lá ter e fazemos o trabalho que se impõe. Agora, quando são os jornalistas a tentar fazer um contraditório quase que não encontramos um feedback. Esta questão da Assembleia Nacional é sintomática.

 

Acção de repúdio: «Vamos lançar a nossa campanha de luta contra a censura no Parlamento»

Até aonde vocês pensam ir com esta pressão à Assembleia Nacional, uma vez realizado o pretendido boicote à próxima sessão plenária do Parlamento? 

O Sindicato dos Jornalistas Angolanos entende que deve ir até às últimas consequências. E as últimas consequências são o boicote, primeiro… Nós estamos a mobilizar a classe, os responsáveis da comunicação social para efectivarmos o boicote à primeira sessão plenária da Assembleia Nacional deste ano, por um lado. Por outro lado, temos um conjunto de actividades que nós estamos a desenvolver. Deixa-me dizer que dentro em breve vamos lançar a nossa campanha de luta contra a censura no Parlamento que se vai estender até dia ao 3 de Maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Portanto, há um conjunto de acções que nós estamos a desencadear para lutar, para protestar a postura da Assembleia Nacional que não é dignificante para o próprio Parlamento e para a função que a própria Assembleia Nacional tem.

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