SÉRGIO PIÇARRA: “OS POLÍTICOS ESTÃO SUJEITOS À SÁTIRA E AO GOZO POPULAR E NÃO DEVEM CHATEAR-SE POR ISSO”
O cartoonista Sérgio Piçarra dispensa apresentação na praça pública angolana. É o homem por detrás do ousado Mankiko, a caricatura que não poupa palpites mordazes sobre o nosso ambiente social e político. Nesta entrevista exclusiva ao Jorn al d e A ng ol a , aponta a figura política mais difícil de ser caracterizada e aclara, ao fazer um recuo no polémico acontecimento de 1994, que ditou o seu afastamento desta “casa de imprensa”, que o visado em causa “não era Marcolino Moco, mas sim uma figura que simbolizava o poder”
Se lhe pedissem uma síntese da sua história de vida, que momentos destacaria como aqueles que melhor definem a carreira de um cartoonista da sua craveira?
Comecei na Banda Desenhada. O cartoon veio depois. É bom referenciar que cartoon e Banda Desenhada não são a mesma coisa, embora às vezes se misturem e por isso se confundam. Assim, tenho de destacar momentos onde ambas as actividades se cruzam, sendo que uma delas foi de ter um dia conhecido o mestre Henrique Abranches, em 1984. Em 1990, fui um dos autores dos primeiros livros de banda desenhada angolana e de cartoons lançados no país. Ainda nesse ano, lancei o “Mankiko” pela primeira vez. Depois de muito tempo sem publicar, voltar a editar dois livros de cartoons foi também um momento muito especial, talvez o mais importante, por marcar uma fase de maior maturidade, justamente em 2016, no auge da crise económica e no auge do “kafrique” político a que estávamos sujeitos.
Profissionalmente, como se apegou à sátira de assuntos sociais? Existe uma linha que separa o antes e o depois?
Fui me apegando à sátira desde que criei o “Mankiko”, estamos a falar de 1990. Nessa altura, havia um vazio nesta área, que já vinha dos anos 80, e senti que estava em condições de preencher através do cartoon. Lembro-me de ter visto um desenho muito mau publicado no Jornal de Angola e de ter pensado “epa, eu faço melhor do que isto!” Nessa altura, eu já deambulava pela redacção do Jornal de Angola há algum tempo, colaborando (e às vezes até dirigindo!) o Suplemento Infantil que era publicado na altura. Tinha 15 anos de idade. Fui crescendo e a minha consciência sobre os problemas que me rodeavam, quer sociais quer políticos, foi amadurecendo: a falta de água, os cortes de energia, o lixo, a desgovernação, a guerra, a corrupção, etc… Senti que podia expressarme e participar no espaço público expondo esses problemas através dos meus desenhos. O “Mankiko” é talvez o resultado dessa consciência e o “culpado” de me ter afastado da Banda Desenhada e me ter mergulhado no cartoon…
Que balanço faz da banda desenhada em Angola e a sátira em particular?
Nos anos 90, tínhamos um grupo muito promissor, do qual fiz parte, dirigido pelo falecido mestre Henrique Abranches. Tivemos uma série de iniciativas, desde a publicação de uma revista, a aulas de formação. É desse grupo que resultou a maior parte dos talentos que temos no momento. Esbarrámos nas dificuldades conjunturais do país, o grupo desfez-se e cada um seguiu o seu caminho. Há outras iniciativas mais recentes e alguns jovens com talento. Porém, continuam a esbarrar no mesmo problema, que é a escassa rentabilização do trabalho e a impossibilidade de viver dele.
E como se vive?
O custo de produção de uma banda desenhada é alto e as vendas não compensam esse custo. Acresce a falta de hábito de leitura do público, o fraco poder de compra, a falta de incentivos oficiais, etc. Há iniciativas, há talentos, mas não existe uma política do Estado, de educação e incentivo ao gosto pela leitura, pelo livro, pelas artes. Sem que o papel seja subvencionado e os livros sejam baratos, não há como rentabilizar um projecto que permita ao autor ganhar o seu pão e ter incentivo para continuar a criar. Os poucos autores de BD que temos vivem essencialmente de trabalhos esporádicos que fazem para órgãos do Estado ou ONG. Quanto ao cartoon editorial, do género que eu faço, é dirigido essencialmente para os jornais e, sinceramente, aqui o “balanço” também não pode ser positivo. É só ver, em 43 anos de Independência, quantos cartoonistas editoriais temos ou quantos jornais publicam cartoons.
Numa entrevista, o Piçarra relata um episódio acerca de um trabalho seu que expunha alguém e ficou associado a Marcolino Moco, à época Primeiro-Ministro, com consequências na direcção do Jornal de Angolana altura. Como foi isso?
O visado não era Marcolino Moco, mas sim uma figura que simbolizava o poder. Esse cartoon resultou na exoneração do então director do Jornal de Angola e também na minha “exoneração” como não podia deixar de ser. Estávamos em 1994, se não estou em erro. Eu leiloei esse cartoon mais tarde, por 600 dólares. Ofereci esse valor ao projecto “Um tecto para os meninos de rua” que existia na altura, patrocinado pelo programa “Bom dia, Bom dia”, da rádio LAC. Depois dessa exoneração, foi uma longa travessia no deserto.
Na sua opinião, que “ingredientes” flagrantes continha o desenho para a opinião pública o associar imediatamente à figura de Marcolino Moco?
Coincidentemente, na altura, o Primeiro-Ministro era de facto Marcolino Moco e terá sido ele a decretar a exoneração do director do “JA”, sob pressão de um dos seus assessores. Porém, repito, o desenho não lhe era particularmente dirigido. Fiquei apenas com a ideia que o cartoon era muito “ousado” para o momento, tendo tido as consequências que teve, não ficando, entretanto, excluída a sensação de ter sido um pretexto para acabar com aquela “assanhadice” dos cartoons no jornal.
Esta foi a mais polémica das interpretações dos seus trabalhos ou tem registo de outra?
Sim, terá sido esse o cartoon mais “mal interpretado”, que eu tenha conhecimento (risos!).
Isso o inibiu ou agudizou ainda mais a sua postura satírica e mordaz?
Isso fez, sobretudo, desaparecer o cartoon do horizonte editorial por largos anos. O Jornal de Angola sempre foi o maior veículo da imprensa escrita e na altura os cartoons eram quase uma marca deste jornal. As pessoas recortavam nos das páginas do jornal e coleccionavam-nos. Ainda tentei outras iniciativas, mas não deram certo. Andei pelo design gráfico e pela publicidade, ganhando outras experiências. Regressei ao cartoon em 2008, com o surgimento do semanário Novo Jornal. Não sei se esse episódio me tornou mais ou menos mordaz, mas que foi um sinal bem explícito sobre o quesito liberdade de expressão no país, lá isso foi!
Depois de quase 30 anos de existência, como preencheria o BI de Mankiko?
Das últimas vezes que ele tentou tratar o BI, não havia plástico para emitir os bilhetes…depois, não havia sistema…não sei se já o terá conseguido!
O Mankiko reflecte o cidadão e pai de família Sérgio Piçarra? Ou seja, é por esse personagem que sai à tona ou ultrapassao e tenta expor os anseios de uma época?
Bom, vou deixar as definições para os entendidos em Arte e Psicologia. Para mim, ele é tão somente o veículo pelo qual me expresso, na tentativa de retratar com algum humor as peripécias do nosso dia-a-dia social e político, que são as coisas que mais me preocupam.
Há vozes da sociedade civil que dizem ouvir de Mankiko o que não ouviram de mais ninguém. Acredita ser um pouco por essas coisas que Adriano Mixinge o considera como aquele que “transforma o povo em cidadão”?
O Adriano Mixinge, tal como outras pessoas que se referem a mim, são todas elas muito simpáticas e agradeço-lhes muito por isso. Eu faço cartoons seguindo-lhe as regras que o definem: um desenho humorístico, um contexto específico e uma sátira. Fico muito feliz por esse trabalho chegar às pessoas e ter algum impacto positivo sobre elas.
Alguma vez receou ser mal interpretado? E chegou a ser mal interpretado?
Não sei se devo dizer mal interpretado ou bem interpretado demais! Há bocado, disse-me que a figura daquele cartoon era o Marcolino Moco, por exemplo, e na verdade não era, nem sequer era parecido! Às vezes as pessoas tendem a fazer leituras de coisas que nem me passaram pela cabeça, mas quando se comunica há sempre esse risco; são ossos do ofício. Tirando esse exemplo, e alguns outros poucos, acho que até, em geral, tenho sido muito bem interpretado…
Sofreu algum tipo de represália? Pode debruçar-se sobre ela?
A única represália digna de registo foi a de ter sido dispensado do Jornal de Angola pelo seu novo director, em 1994. Não me peça para citar o nome dele para não criar mais maka, por favor! Nós até falamos bem, embora presuma que neste momento ele esteja chateado comigo… Houve também uma situação caricata, há dois anos, quando um famoso supermercado de Luanda se recusou a vender o meu livro por não estar de acordo com a sua “linha editorial”! Também, por algum tempo, foi complicado meter os livros nas grandes superfícies comerciais, mas depois foi ultrapassado.
Há sensivelmente dois anos, o Núcleo de Jovens da Banda Desenhada foi contemplado com o Prémio Nacional de Cultura e Artes, na disciplina de Artes Plásticas. Afinal, a seu ver, a banda desenhada é ou não reconhecida e levada em conta?
A primeira pergunta a fazer é como é que se dá prémios aos filhos sem antes premiar o pai? O pai da Banda Desenhada angolana é Henrique Abranches, autor das primeiras expressões de banda desenhada angolana ainda no tempo da guerrilha do MPLA. Foi mestre de todos nós que, ainda miúdos, gravitávamos à volta dele. Henrique Abranches é também pai da Museologia e da Antropologia em Angola, de estudos sobre o Reino do Kongo, do desenho digital, da ficção científica na literatura… e permanece, injustamente, esquecido. Como ele, há outros tantos esquecidos. Os critérios de atribuição de prémios são muitas vezes questionáveis.
Sente que o seu trabalho é reconhecido? Como?
Pelo público, em especial, sim. Recebo muitas manifestações de admiração e carinho das pessoas. Os meus livros têm sido publicados graças a pessoas que se mobilizam contribuindo do seu bolso para pagar os gastos com a impressão e tudo o resto. Isto vale mais do que qualquer reconhecimento oficial que não tenha recebido. Porém, tenho de referir que há uns bons anos, recebi um diploma do Ministério da Cultura. O pessoal do “Goza Aqui” também fez-me há algum tempo uma homenagem. Agora, há poucas semanas, o Ministério da Comunicação Social disponibilizou-se a apoiar o lançamento do meu livro mais recente. O secretário de Estado, Celso Malavoloneke, esteve presente no lançamento e proporcionou-me um encontro com o ministro João Melo, com quem mantive uma conversa cordial. O facto de estar a dar esta entrevista ao “JA” (casa onde nasci e de onde fui dispensado há vinte e tal anos) é também algum reconhecimento. Acho que os novos ventos trazidos pelo Presidente João Lourenço tendem a normalizar as coisas.
Sabemos que se engajou para dar vida a um jornal de banda desenhada e de cartoon que teve um fim ainda embrionário. Ainda tem esse projecto em agenda?
Não. Sem ovos não há como fazer omeletes. Não temos nem cartoonistas nem apoio suficientes para sustentar um projecto dessa natureza. Nesse projecto a que se refere (foi há 10 anos), eu fazia de tudo um pouco: os cartoons, a paginação, os textos e até a distribuição dos jornais nos postos de venda. Sem falar do ter que andar atrás dos poucos colaboradores que tinha e que não enviavam o trabalho a tempo e hora. O meu entusiasmo levou-me, algumas vezes, a entrar em utopias como essa… mas já não entro mais!
À época destacou não haver clima nem cartoonistas. Passado esse tempo e com estas mudanças que em muito se reflectiram na imprensa, como avalia hoje o ambiente para o projecto de um jornal?
O ambiente político é melhor, mas o ambiente comercial para manter uma publicação é mau. E não havendo cartoonistas suficientes e bons pior ainda.
No fundo, é “chafurdando” na política que vive o cartoon?
Os políticos “chafurdam” na política. O cartoon expõe-nos. Eles, os políticos, são a inspiração de qualquer artista que, como eu, anda nestas lides da sátira. Quando eles se portam bem, ficamos sem assunto!
Os desenhos que traça fazem, realmente, fé às pessoas que quer retratar? E nunca lhe disseram, por exemplo, que exagera na “deformação”?
Algumas pessoas dizem que os meus cartoons são muito contundentes. Mas se for aqui ao lado, precisamente à África do Sul, ver como os cartoonistas sul-africanos retratam os políticos, vai perceber que os meus cartoons são muito “bonzinhos”…Tudo depende da realidade em que se vive e a nossa, mesmo estando melhorzinha, ainda é hipersensível à crítica. De resto, os cartoons não “deformam” a realidade como tal, apenas a representam através de símbolos que podem ser mais ou menos expressivos. Mas disso é feita a sátira. Os políticos, como figuras públicas que são, estão sujeitos à crítica, à sátira, até ao gozo popular, e não devem chatear-se por isso. É assim em todo o mundo. Um bom político também se mede pela sua capacidade de encaixe e nós precisamos de bons políticos.
De quem é a imagem que mais gosta de desenhar? Porquê?
À excepção do Mankiko, da menina Esperança e do Bebé Futuro, não tenho nenhuma preferência em especial.
De quem é a imagem mais difícil de reproduzir? Porquê?
É a de José Eduardo dos Santos. Por dois motivos: primeiro, por ter um rosto muito regular, difícil de caracterizar… O segundo motivo é por… medo.
Num tempo aberto ao debate, o que significa a frase “não quero discutir”, que dá título ao seu mais recente rebento?
Eu adoro expressões populares e esta é uma das mais engraçadas pela sua carga irónica. Quando dizemos que “não queremos discutir” é porque, na verdade, o assunto no ar dá uma boa discussão. No caso, a expressão caiu que nem uma luva para ilustrar a maka silenciosa entre o ex-Presidente e o actual: eles, no princípio, em relação à transição do poder, diziam que estava tudo bem, que não “queriam discutir”, mas afinal…
Perfil
Nome: Sérgio Romeu Piçarra
Onde nasceu? Luanda, bairro Catambor
Estado Civil? Casado
Formação? Ensino Médio de Ciências da Educação
Ídolos? Todos os que pelo seu trabalho e coragem fizeram a diferença
Quantos filhos? Muitos…
Fonte: Jornal de Angola | Matadi Makola