José Gama: “Os Serviços Secretos foram usados para fins pessoais, para perseguição”

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“Angola precisa se reencontrar, precisamos de ir para um Estado de direito, não um Estado militarizado, que é controlado pelos militares, pelos Serviços Secretos”

Fonte: OI

Domingos da Cruz – Temos hoje disponível para o Observatório da Imprensa José Gama, um dos responsáveis do “Club-K”. Gostaríamos de agradecê-lo pela disponibilidade e dizer que vamos ouvir José Gama sobre os Serviços de Inteligência, vulgo Serviços Secretos.

O Observatório da Imprensa decidiu ouvir José Gama sobre esse tópico pelo facto de dedicar vários artigos sobre essa questão. Temos conhecimento que é alguém que se identifica com o assunto Serviços secretos, Serviços de Inteligência, falo particularmente no contexto angolano e africano… Africano, porque também já li alguns artigos que o Gama escreveu sobre os Serviços de Inteligência no contexto da Guiné-Bissau, por exemplo. E a minha primeira questão José Gama é: no caso de Angola, nós temos um quadro legal que justifica o funcionamento dos Serviços Secretos? Como deve saber há uma Lei de base sobre Educação, há uma Lei de base sobre a Saúde. Há uma base legal que sustenta o funcionamento dos serviços de inteligência em Angola?

José Gama – Desde já obrigado pela oportunidade para falar deste tema sobre o país, sobre a questão colocada, os Serviços de Inteligência de Angola no seu todo. Angola tem neste momento três principais ramos de inteligência: o SINSE, que é a inteligência doméstica; SIE que é o Serviço de Inteligência Externa; o SISME, Serviço de Inteligência e Segurança Militar. Os três regem-se com base numa legislação devidamente aprovada, isso já desde a sua existência. Portanto, eles existem em qualquer parte do mundo, aliás em qualquer parte do mundo já não há nenhuma nação que consiga sobreviver ou avançar sem os serviços de inteligência, e tivemos o caso concreto de Angola. Por exemplo, tivemos um conflito armado durante mais de duas décadas e, nas últimas décadas do fim do conflito armado, podemos considerar que aquilo foi um trabalho fora daquilo que os militares fizeram; foi um trabalho que teve muita intervenção do SIE e vimos como fizeram para desactivação das redes externas da UNITA, que sobrevivia a dada altura de redes da África do Norte e o SIE absorveu muita gente, desertores que vinham da UNITA, passou a estudar melhor a UNITA e conseguiu, vamos dizer assim, penetrar dentro daquela estrutura militar e conseguiu de uma forma pacífica, pelo menos do lado do SIE, ajudar a pôr fim no conflito, trazendo muita gente da UNITA para o lado do governo.

“… em qualquer parte do mundo já não há nenhuma nação que consiga sobreviver ou avançar sem os serviços de inteligência”

DC- É óbvio que os Serviços Secretos são fundamentais para o funcionamento de um Estado, mas é preciso que se tenha consciência de que os Serviços Secretos devem servir os interesses nacionais e não perseguirem cidadãos, a não ser que os mesmos estejam a pôr em causa o interesse nacional. Ora, no contexto angolano, há reclamações permanentes de que os serviços secretos invés de servirem efectivamente o interesse nacional, neste caso os três ramos, pelo contrário têm a prática de perseguição dos cidadãos.

JG – Em Angola houve uma dada altura, que durante muitos anos, prontos, durante a era colonial teve a PIDE que acabou por ser extinta no dia 26 de abril de 1974. Depois do fim da PIDE surgiram os movimentos, e os movimentos, neste caso concreto o MPLA, que assumiu o poder, criou a DISA e a DISA na sua fase inicial comportou-se como se fosse uma PIDE que perseguia, tornou-se uma polícia política que perseguia as pessoas, que perseguia opositores. Dedicava-se na identificação de opositores internos, aqueles que não se identificassem com o regime, isso durou desde 1975, por tivemos até o 27 de maio, mas isto foi lá mais para frente. Só depois de 1991-1992, com abertura do multipartidarismo, é que começamos a ver uma melhoria da organização do serviço, mas não necessariamente vocacionada à perseguição de pessoas, mas notou-se que houve casos de cidadãos que reclamavam de perseguição por agentes da segurança. Houve o caso da operação que levou à morte do Cassule e Camulingue; temos o caso do Dr. Mfulupinga N’Landu Victor, que para já foi uma morte estranha, ficando por se se esclarecer até agora. E o facto de não ter ficado esclarecida, naturalmente provocou dúvidas nas pessoas, porque o governo nunca mostrou nenhum interesse em prestar esclarecimento de facto sobre o que aconteceu com o Dr. Mfulupinga. E eu creio que nunca mais se vai ter a verdade, porque o crime a partir de agosto deste ano irá prescrever. Tivemos o caso, por exemplo, do general Zé Maria, que esteve a frente do SISME e a dada altura transformou o SISME como se fosse um instrumento pessoal, como se fosse um brinquedo pessoal. [Ele] retalhava indivíduos que ele não gostava, sobretudo aqueles que fossem originários da UNITA; tinha uma paranoia de retalhar elementos que ele achasse que tivessem fora da disciplina militar. E verificou-se também, em 2006, a forma como os próprios serviços foram usados, para retalhar os próprios serviços, no caso concreto o general Zé Maria, o general Kopelipa, acabaram por usurpar os serviços das mãos do Chefe do Executivo para acabar com uma outra ala de um outro aparelho de segurança, neste caso concreto aquele que foi a antiga direcção dos serviços de inteligência externa, que deu lugar depois àquele processo que levou à detenção dos antigos responsáveis, que foram acusados inicialmente de planearem um golpe de Estado contra o Presidente. Depois inventou-se que era crime de insubordinação e, mais tarde, ouvimos o general Francisco Pereira Furtado a dar entrevista dizendo que afinal, naquela altura, ele nem sequer tinha competência para despromover um general, era uma competência exclusiva do Comandante em Chefe. Ele veio explicar que nem sequer a Procuradoria Geral da República chamou-lhe para certificar-se de facto, mesmo se de forma errada convocou ou não. Mais tarde ficamos a saber que, afinal, o general Zé Maria forjou uma convocatória contra os outros colegas do SIE acusando-os de insubordinação. Prontos, isso para mostrar que, de facto, Angola teve esses episódios, em que os Serviços Secretos foram usados para fins pessoais, para perseguição de elementos dentro do próprio regime. Claro que isso não deveria ser assim, porque em qualquer parte do mundo os Serviços de Inteligência servem para assessorar o Presidente da República em termos de informação estratégica, informação de carácter militar, de carácter económico, para puder ter elementos para dirigir o país. Hoje nenhuma, em parte alguma do mundo, ninguém governa sem ter informação e vimos o caso dos EUA. O que é que aconteceu no Irão? Estamos diante de um conflito de qualquer erro humano, qualquer erro dos Serviços Secretos, aquilo dá logo numa imprecisão, resulta logo num colapso.

“Angola teve esses episódios, em que os Serviços Secretos foram usados para fins pessoais, para perseguição de elementos dentro do próprio regime.”

DC –Eu gostaria de lembrar que temos outros casos que demostram exactamente o uso dos Serviços de Inteligência contra cidadãos angolanos. Lembro-me, por exemplo, de Ricardo de Melo e chamo a colação dessa discussão o Ricardo de Melo pelo facto de o Observatório da Imprensa estar essencialmente focado na promoção da liberdade de expressão e de imprensa. Como sabe, Ricardo de Melo figura na lista daqueles que infelizmente perderam a vida exactamente pelo facto de falar.

JG – Exactamente. O Ricardo de Melo completa mais um aniversario desde que partiu, foi um dos pioneiros do jornalismo de investigação em Angola no período de conflito armado. O Ricardo, já naquela altura, denunciava casos de corrupção do regime, já denunciava questões ou matérias de natureza militar, naquela altura muito sensíveis, sobretudo aquelas matérias que ele correspondia para canais internacionais como para a Lusa, a RTP e o Ricardo passava muita informação das suas fontes que ele tinha de natureza militar. E aquilo logicamente que irritava o regime, mas o que irritava mais ainda o regime foram as denuncias de carácter sobre a corrupção. E antes da sua morte havia relatos, na altura já a sua esposa denunciou que ele recebia ameaças que era para ponderar, que era para se acautelar e, infelizmente, Ricardo de Melo acabou por perder a vida.

Dizia-se na altura que há generais que falavam com ele, cita-se várias vezes o general França Ndalu, que foi falando também com ele em tom de ameaças. Mas este general Ndalu nunca reagiu publicamente a desmentir esta informação que, ele começou a criar anticorpos dentro do regime. Diz-se que, na altura, o Ricardo vivia num apartamento e parece que o regime alugou um apartamento ao lado ao dele e controlavam-lhe a partir dai. E um dos dias ele, ao subir as escadas, acabou por ser morto e não se verificou vestígios ali nenhum e também, como disse antes, nem as próprias autoridades deram–se o trabalho de investigar, nem que fosse só para fingir estar a prestar algum esclarecimento do que se passou então. Pela forma como foi morto, sem esclarecimento, sem interesse de investigação, aquilo acaba por ser uma morte com características que se enquadram dentro do interesse do regime. Muitas das vezes as mortes que são do interesse do regime, aquelas que aconteceram na altura, tinham essa característica de não haver investigação ou melhor de haver desinteresse em investigação e desinteresse por parte das autoridades em trazer a verdade, como aconteceu com o próprio Mfulupinga N’ Landu Víctor, como há pouco tempo citou-se também o caso do Camulingue e Isaías Cassule. Houve também essa tentativa de não querer se esclarecer. Tiveram que ser os activistas, a sociedade civil, o movimento revolucionário que, a dada altura, faziam pressão às autoridades, ao então Ministro do Interior, Sebastião Martins. Houve pressão da comunidade internacional, necessariamente oficiais das Nações Unidas, sempre que estivessem em Angola interpelavam o Presidente José Eduardo dos Santos, até que chegou uma altura que a situação ficou insustentável do ponto de vista da mentira. Tiveram que abrir o jogo mesmo. Na altura havia o interesse em arranjar alguém para culpar a UNITA, para dizer que a UNITA é que havia morto os dois activistas, mas infelizmente para o bem da cidade houve denúncias e as coisas vieram a público – que o Cassule e o Camulingue, necessariamente o Kamulingue foi raptado, depois deram-lhe dois tiros, um na cabeça, outro no peito e acabou por morrer. Não resistiu! Foram homens dos Serviços de Investigação Criminal, na altura era a DNIC, e o Cassule acabou por morrer de igual forma. Quando foi raptado, levaram-lhe, vendaram-lhe a cabeça num saco plástico e ele não resistiu, perdeu os sentidos e, obviamente morreu. Os homens que estavam ali presentes ficaram sem saber o que fazer com o corpo e levaram-no perto ao rio da Barra do Dande, em Luanda, e atiram o corpo. Foi uma operação que teve a participação do general Filomeno Pedro, dos Serviços de Inteligência Militar. Durante o julgamento apareceu um outro indivíduo, chamado Maurício Júnior, que participou na morte do Cassule, que era um homem do Gabinete Técnico do MPLA de Luanda. Várias vezes em tribunal dizia e citava que recebeu instruções ou que reportava ao Tenente General Filomeno Peres Afonso. As autoridades não tiveram interesse de chamar o general Filomeno, das vezes que o chamaram, o general Zé Maria desautorizou o tribunal, dizia que o Filomeno estava em tratamento na África do Sul e, até hoje, o Cassule morreu e o general Filomeno que foi um dos responsáveis pela morte do Cassule, conforme foi citado em tribunal, está aí impune.

Houve também o caso de um outro jovem que participou do rapto do Cassule e do Camulingue. É o jovem Benilson ou Tucayano, que até hoje nem as autoridades se prestaram em emitir um mandato de captura contra ele. Esteve nos primeiros dias em tribunal, mas depois acabou por desaparecer. Dizia-se na altura que contava com a protecção do antigo Procurador-Geral General João Maria de Sousa. Então, quer dizer, nós estávamos diante de um sistema que patrocinava, não só patrocinava, como também ajudava muito na impunidade contra os agentes, contra essas pessoas que estavam ao serviço do Estado e praticavam esses actos de terrorismo, de morte e execuções de pessoas.

“Muitas das vezes as mortes que são do interesse do regime, aquelas que aconteceram na altura, tinham essa característica de não haver investigação (…) como aconteceu com o próprio Mfulupinga N’ Landu Víctor, como há pouco tempo citou-se também o caso do Camulingue e Isaías Cassule. (…) nós estávamos diante de um sistema que patrocinava, não só patrocinava, como também ajudava muito na impunidade contra os agentes, contra essas pessoas que estavam ao serviço do Estado e praticavam esses actos de terrorismo, de morte e execuções de pessoas”

DC – De acordo com as tuas fontes há efectivamente, a nível dos Serviços de Inteligência, acções com vista a desestabilizar partidos políticos da oposição, organizações da sociedade civil, com vista a favorecer o grupo do poder?

JG – No tempo de José Eduardo era muito visível os serviços, a Casa Militar, a intrometer-se em assuntos dos partidos políticos. Por exemplo, recentemente tivemos o congresso da UNITA, ocorreram lutas internas, não se sentiu o MPLA, ou o jornal de Angola, ou a TPA, a explorar aquelas lutas. No passado era explorado, como iam buscar analistas políticos do MPLA que era para debater aquilo na televisão de forma pejorativa, que era no sentido de criar um estado de opinião de que a UNITA estava com problemas, não estavam unidos ou estavam desorganizados. Neste congresso da UNITA, é um dos congressos pelo menos que não se sentiu essa interferência, mas é lógico, como em qualquer parte do mundo que os serviços tenham interesse, por exemplo, pelos partidos políticos. Aliás temos o caso do próprio SIM, que tem um departamento que funciona como um grupo de acompanhamento a eventos políticos.


“No tempo de José Eduardo [dos Santos] era muito visível os serviços [secretos], a Casa Militar, a intrometer-se em assuntos dos partidos políticos”

DC –Os Serviços de Inteligência acompanharam a actividade dos partidos políticos e qualquer um dos partidos, seja ele no poder ou não, e a outra é ter um departamento com vista a acompanhar os outros partidos da oposição, bloquear as suas acções, criar, tal como acabas por referir, uma opinião negativa na sociedade sobre a oposição, são coisas completamente diferentes. Inclusive isso contraria aquilo que é o fim dos serviços de inteligência, que é a protecção do interesse nacional. E proteger o interesse nacional pressupõe, por exemplo, uma sociedade onde haja democracia, e a democracia pressupõe existência de pluralidade. Ora, se os Serviços Secretos visam pôr em causa a pluralidade, promovendo um só grupo que está no poder, isso é contra os interesses nacionais e nega a razão da existência dos Serviços de Inteligência?

JG– Exactamente. Isso era muito visível na era de José Eduardo dos Santos. Notava-se que os Serviços interferiam abertamente nas questões dos partidos políticos, infiltravam-se. Os próprios serviços patrocinavam formação de partidos políticos… Hoje, o país mudou de direcção, tem um novo Presidente, uma nova equipa ao nível de todos os serviços e eu penso que todos estes devem estar a seguir a dança do Presidente, que é no sentido de promover abertura.

“Hoje, o país mudou de direcção, tem um novo Presidente, uma nova equipa ao nível de todos os serviços e eu penso que todos estes devem estar a seguir a dança do Presidente, que é no sentido de promover abertura”

DC – Miala não é novo, além demais ele está entre aqueles que são acusados de ter contribuído para a morte de Mfulupinga N’ Lando Víctor. É óbvio que até hoje não está esclarecido, mas nesta altura estava no SIE?

JG – Sim, na altura, Fernando Miala estava no SIE, que era inteligência externa; para questões domésticas tínhamos o antigo SINFO, que agora chama-se SINSE. Pronto, como disse atrás sobre a morte de Mfulupinga, o facto de as autoridades não realizarem uma investigação, deixou esse espaço de dúvida, que dificilmente as autoridades vão poder se defender, que elas não tivessem algum dedo aí. O nome do general aparece nisso. Mfulupinga morre baleado no Cassenda, perto da sede do partido do falecido Bengue Pedro João.

Bengue Pedro João estava naqueles lados e a primeira pessoa que ele ligou foi ao general Miala, e ele aparece aí, e daí criou-se essa conotação do general Miala com aquele acidente.

“(…) a morte de Mfulupinga, o facto de as autoridades não realizarem uma investigação, deixou esse espaço de dúvida, que dificilmente as autoridades vão poder se defender, que elas não tivessem algum dedo aí”

DC- Com vista a contextualizar, tendo em conta o presente, nota-se claramente que fazes uma leitura com optimismo para os novos tempos. Mas em termos de consciência histórica, e o Gama terá escrito um artigo muito interessante, já há alguns anos, que recupera essa ligação entre os Serviços de Inteligência e a imprensa sobre o controlo do Estado para manipular a opinião pública contra as forças da oposição. E citou, por exemplo, a forma como Holden Roberto foi tratado no passado… Episódios de carne humana no frigorífico, relatas outros exemplos que tem que ver com a UNITA… Trago esses exemplos simplesmente por uma questão de consciência histórica, para que as pessoas possam estabelecer uma ligação entre uma prática que é antiga, que tem décadas que se estende até os dias de hoje, portanto, transformou-se numa espécie de cultura interna na forma como os Serviços Secretos agem?

JG – Pois, na fase inicial nós tínhamos um Estado puritano, o que quer dizer, era um Estado militarizado. Os movimentos quando chegaram em Luanda, eles vinham de uma guerrilha, transportavam e tentavam ensaiar um regime paramilitar. Tudo era militar, por exemplo, na fase inicial de Angola tínhamos uma imprensa em que os jornalistas acabavam por vir dos Serviços de Segurança. Havia um jornal de desporto militar, quer dizer, nós tínhamos uma imprensa que, na fase inicial, era controlada pelo regime, pelos Serviços de Inteligência. Isso não só aconteceu em Luanda, como também acontecia na Jamba. Se formos a ver o histórico, isso [não] só era na imprensa, também no desporto. Por exemplo a UNITA tinha um clube de futebol, que mais tarde foi indicar o esconderijo de Jonas Savimbi, fazia parte deste clube que era o coronel Ouvido. Mas, a dada altura, nós notamos que João Lourenço está há dois anos no poder, mas notamos que atenuou um pouco, tem feito um esforço para haver abertura. Já não se nota hoje jornalistas a virem a público dizer que foram censurados, ou que dentro das redacções havia um elemento estranho que impôs uma linha editorial, ou que passou uma ordem superior do género. Eu penso, prontos, está-se [a] ensaiar, vamos dar o benefício da dúvida, está-se [a] ensaiar um sistema democrático, mesmo que não seja a cem por cento ou a noventa por cento, mas nota-se que houve um desafogo por volta da imprensa, por parte dos Serviços Secretos, até da própria Presidência. Nós, a dada altura, tínhamos a imprensa, mas tínhamos o próprio palácio presidencial, que passava ou dava ordem à imprensa. Uma das vezes, a Hillary Clinton esteve em Luanda e as perguntas que os jornalistas colocavam antes tinham que fazer passar pelo senhor Aldemir da Conceição Vaz, que as aprovava depois de dar os detalhes de volta. Via-se esse tipo de interferência. Hoje nota-se que tem-se estado a fazer de forma muito discreta e sem que as pessoas se apercebam, porque sabem que se alguém a se perceber de uma acção do género, que acaba por ser uma acção de censura, as pessoas vão denunciar.

“Já não se nota hoje jornalistas a virem a público dizer que foram censurados (…) João Lourenço está há dois anos no poder (…) tem feito um esforço para haver abertura (…) está-se [a] ensaiar, vamos dar o benefício da dúvida, está-se [a] ensaiar um sistema democrático, mesmo que não seja a cem por cento ou a noventa por cento”

DC – Vejamos como é que somos vistos a nível internacional. Recentemente, a Freedom House publicou um relatório relativamente ao acesso à Internet e à vigilância. Segundo o relatório, Angola está entre os países cujos cidadãos estão sob vigilância a nível da rede internet, e esta vigilância é levada a cabo pelos Serviços Secretos. Já na era do novo Presidente, portanto, depois da chamada sucessão presidencial, qual é o comentário que tem sobre isso?

JG– Eu penso que em qualquer parte do mundo é normal… Não é que dos Serviços Secretos estejam a querer fazer um controlo, mas eu penso, até isso se nota nos grupos, nas redes sociais nos comentários que são feitos, nos sites… Para acompanhar o que as pessoas dizem, fazem o chamado Estado de opinião, medir o que o povo fala. A internet revolucionou a nossa forma de estar, hoje já não é necessário estar aí a fazer escutas nos bares, a ouvir ou a tentar perceber o que o A e o B dizem. Hoje basta ir às redes sociais, ler o pensamento de activistas, de pessoas que são influentes a nível da sociedade, como Reginaldo Silva e Ismael Mateus, etc.
Eu acho que hoje qualquer serviço, não só de Angola, mesmo até de outros países, quer saber como é que esses “opiniers” \medias estão a pensar sobre um determinado assunto, basta ir para as páginas deles pessoais, ler–se aí os debates e eu acho que conseguem fazer uma leitura. Hoje o que as pessoas estão a pensar é daí, se calhar que a Freedom House deve estar [a] fazer a interpretação de que Angola tem estado a controlar… Porque mesmo se Angola tivesse a controlar, não teria capacidade humana para tal. Hoje são milhares de pessoas a usar as redes sociais, pelo que não acredito que seja uma coisa fácil para se controlar. Não creio que Angola tenha capacidade humana, não só Angola, mesmo até os EUA, a China, por exemplo, é um país que pratica isso. Eles conseguem fazer, através do filtro ‘palavra-chave’ e etc. Uma das coisas que eles conseguem fazer é impondo o medo nas pessoas, o Chinês põe na mente de todos, que todos estão a ser controlados, o chinês vive do medo daquele pânico como se tivesse num “Big Brother”; ele consegue controlar isso através do pânico e, como antes no passado, o regime tinha esse controle sobre nós, todo mundo achava que o seu telefone estava sob escuta ou coisa parecida. As pessoas tinham medo de falar, tinham medo de se comunicar, de falar qualquer coisa que soasse tese anti-regime.

“A internet revolucionou a nossa forma de estar, hoje já não é necessário estar aí a fazer escutas nos bares, a ouvir ou a tentar perceber o que o A e o B dizem. (…) Hoje são milhares de pessoas a usar as redes sociais, pelo que não acredito que seja uma coisa fácil para se controlar”

DC – De onde vem o seu optimismo? Deixa-me fazer uma leitura do ponto de vista psicológico: são os mesmos agentes que perseguiram, que mataram, portanto, João Lourenço não desmobilizou todos, incluindo ele – faz parte da máquina -, e de repente acha que essas pessoas, do ponto de vista psicológico, trocaram o chip. Antes ouviam, escutavam para perseguir, para matar e de repente tornaram-se bons, como se diz a nível do cristianismo – se converteram -, é isso?

JG – Angola vivia um problema primeiro de liderança. Nós tínhamos uma liderança – se alguém matasse outra pessoa, havia um comodismo, ninguém prestava esclarecimento, ninguém estava nem aí, hoje temos uma liderança… Por exemplo, vimos o caso do Wilbert Ganga, da Casa-CE. Quando foi morto, várias vezes pessoas da casa militar diziam “ninguém vai entregar a pessoa que matou porque aquilo pode afectar a moral da tropa”. Mas hoje, acredito, um João Lourenço, ele, não seria capaz de fazer isso; se a pessoa matou, se calhar ele iria entregar. Está aí o caso da Joana Cafrique, que foi morta por um polícia. Dentro de dias, o agente que a baleou vai ao tribunal. Estamos num período de marketing que acaba por mostrar que somos diferentes ao anterior regime, anterior liderança de José Eduardo Dos Santos. E hoje vê-se qualquer falha dos agentes do Estado, ou os dirigentes cometerem aquilo, vai servir para exemplo de cobaia, o próprio regime usa aquilo para exemplo. Isso é apenas para os dois primeiros anos, mas não temos segurança de que mais à frente mude. O segundo mandato do Presidente pode vir a ser diferente, ele está num momento que acaba por ser de campanha. Para ser eleito no segundo mandato, ele precisa de dar esses sinais que tem estado a dar, tentar mostrar um pouco entre “aspas” que é diferente do seu colega, embora o regime seja o mesmo. As pessoas, os protagonistas são todos [os] mesmos, o Governo em si é o mesmo, nada mudou, o que mudou é o apelo de liderança… E que tem uma liderança que não deu sequência às ideias e à forma de agir de José Eduardo Dos Santos, que era protector dos seus, protegia os seus ministros, protegia os seus agentes, protegia os generais. João Loureço quer vender a imagem que não está por ninguém, por isso é que quando tomou posse como líder do MPLA dizia “nem que tivesse que sacrificar os camaradas do seu próprio partido” ele iria fazer. Eu penso que ele é capaz de aguentar-se, pelo menos até o primeiro mandato dele pode seguir nessa linha de integridade, agora no segundo pode ser que fique conformado e acomodado, pode ser que acaba por ir num deslize, esperamos que não. Angola precisa [do] que qualquer indivíduo que esteja no poder precisa – de ter um censo patriota, respeitar sobretudo a vida humana, as liberdades cívicas, as liberdades religiosas das pessoas, etc., e do povo angolano no geral.

“Estamos num período de marketing que acaba por mostrar que somos diferentes ao anterior regime [de Eduardo Dos Santos] (…). Isso é apenas para os dois primeiros anos, mas não temos segurança de que mais à frente mude (…) ele [João Lourenço] está num momento que acaba por ser de campanha. Para ser eleito no segundo mandato, ele precisa de dar esses sinais que tem estado a dar (…) embora o regime seja o mesmo. As pessoas, os protagonistas são todos [os] mesmos, o Governo em si é o mesmo, nada mudou, o que mudou é o apelo de liderança”

DC – Embora seja um tópico à margem, mas dizia que ele deverá ter uma atitude patriótica com vista a respeitar os direitos fundamentais, provavelmente como marketing para que possa continuar num próximo mandato.
Quer dizer, nem sei se tem necessariamente de portar-se bem para ter o voto que lhe permita chegar a um próximo mandato, porque eles nunca conseguiram chegar a mandato nenhum mediante o resultado das eleições mas, esse é um outro tópico a ser discutido… A forma como apresentaste, como se efectivamente tivéssemos eleições íntegras tal como na África do Sul ou na Namíbia, no Botswana… Já sabes que nem o Lourenço chegou ao poder mediante um voto credível, mediante uma eleição respeitável.

JG – Mas em África é o que se diz: em África o que se conta não é a forma como as pessoas votaram, o que conta é criar factos que justifiquem. Olha, o povo estava comigo e criar ideias populistas, acções populistas para depois justificar vitórias, é o que acontece em África. E os políticos africanos, mesmo aqui na nossa região, excepto a África do Sul, se calhar também a Namíbia, mas o resto faz isso. Angola e Moçambique é que tendem a criar ilusionismo.

“(…) em África o que se conta não é a forma como as pessoas votaram, o que conta é criar factos que justifiquem”

DC – Países a nível do continente que hoje fazem eleições com um grau de integridade aceitável. É o caso do Botswana, do Gana e da Zâmbia, onde as eleições são limpas, sem nos esquecermos também das Ilhas Maurícias, tal como dizia, esse é um tópico marginal. Para terminar, gostaria de saber qual é a relação que pode haver entre o facto de as pessoas saberem que estão sob escuta, ou a partir do telefone ou nas redes sociais, e o exercício da liberdade de expressão. Quando as pessoas têm consciência que estão sob escuta, sob vigilância isso, afecta a liberdade de expressão do ponto de vista psicológico?

JG – No nosso caso, depende da nossa cultura. Eu acho que afecta, mas também todo Presidente, as suas comunicações têm que estar sob escuta, têm que ser gravadas. Suponhamos que alguém telefone para o Presidente a fazer uma ameaça, ou uma intimidação, os Serviços Secretos podem depois fazer o rastreio de quem ligou, o que a pessoa disse, entre outras coisas. Isso acontece em qualquer parte do mundo. As comunicações do número um do Governo devem estar sob escrutínio, devem ser acompanhadas. Eu vejo isso mais do ponto de vista da protecção da pessoa e é normal. No caso de um cidadão normal, todas chamadas estarem gravadas e elas só serem liberadas por ordem do tribunal. Suponhamos uma pessoa foi assaltada, ou alguém foi assassinada, ou alguém sofreu uma ameaça, vai-se ao tribunal e o tribunal decide se deve liberar aquela conversa, o que é que a pessoa falou ou coisa parecida, se a pessoa está envolvida no tráfico de drogas ou seres humanos. E se há uma investigação em curso, e se a pessoa for a tribunal, o tribunal pode liberar aquela gravação para certificar de facto se a pessoa andou a falar com traficantes, ou a planear coisas erradas, ou algo do género. Agora estarem as pessoas a falar ao telefone e alguém estar aí a escutar, aí é completamente errado. Eu creio que, em Angola, não há meios técnicos para ter esse tipo de controlo. Havia isso no tempo do partido único, as nossas comunicações eram totalmente controladas, mesmo até para telefonar para fora tinham que ir aos correios e os correios depois faziam a ligação para o exterior, aí havia. Prontos, também era pouca gente com comunicação e havia esse controlo, mas hoje não! Quando se diz que certas pessoas estão sob vigilância, ou coisa parecida, aí sim, fazem coisa do género. Por exemplo, houve o caso do assassinato do Jorge Valério e, a dada altura, a investigação quando tentou procurar as conversa que o Jorge tinha com a ex-namorada, a conversa que os bandidos tinham entre si, a polícia mostrou que tinha dificuldade em ter isso, não conseguiu, e eles antes foram sinceros a dizer que aquilo era impossível, não conseguiam ter aqueles dados. Os dados que eles conseguiam era saber se o telefone A mandou mensagem para o telefone B. Agora, necessariamente o conteúdo da conversa, não. Havia em Abril de 2015 uma proposta de Lei, eu lembro o antigo Ministro do Interior que acumulava as funções com os Serviços Secretos de Inteligência, na altura Sebastião Martins, havia feito uma proposta de Lei à Procuradoria-Geral da República que era para haver um controlo das chamadas telefónicas nesse sentido, mas depois não foi avante porque aquilo acabava por violar de certa forma a privacidade das pessoas.

“Agora estarem as pessoas a falar ao telefone e alguém estar aí a escutar, aí é completamente errado. Eu creio que, em Angola, não há meios técnicos para ter esse tipo de controlo. Havia isso no tempo do partido único, as nossas comunicações eram totalmente controladas”

DC – Finalmente, gostaria de saber se tem um comentário adicional sobre esta questão?

JG – O que gostaríamos de dizer é que Angola precisa se reencontrar, precisamos de ir para um Estado de direito, não um Estado militarizado, que é controlado pelos militares, pelos Serviços Secretos, e etc. E Angola para se democratizar, precisamos de ter um povo livre. Angola não precisa de ter um povo controlado pelo Estado.

Vamos lá ver se o Presidente João Loureço consiga ser integro até ao fim, em termos de liberdades. Nota-se também que, dentro do regime, há dificuldade dos próprios seus camaradas seguirem um rumo democrático, nota-se também não está a ser fácil para eles. Isso vê-se também na própria televisão. Houve uma abertura que é positiva, mas precisa-se fazer mais, dar mais espaço na oposição ou melhor a todos no geral. A UNITA elegeu um novo líder, mas o espaço que o Jornal de Angola deu é um espaço pequeno, se fosse o MPLA aquilo seria manchete. Neste dia, que a UNITA elegeu o novo líder, a vice-presidente do MPLA fez uma actividade, creio que no Cunene. A actividade dela teve mais destaque, foi manchete de capa e não a eleição do novo líder da oposição, que é candidato à Presidência da República, mas prontos…. É um caminho longo. O Presidente João Loureço pode criar as bases, ele e o outro que seja de que partido for venha substituir, venha criar as bases e depois os outros poderão seguir mais à frente uma democracia em plena. Angola também precisa no futuro, como falamos há pouco de eleições, termos uma reforma eleitoral, no sentido de se reformar a Comissão Nacional Eleitoral. Os grandes conflitos eleitorais no fundo, a fonte acaba por ser a CNE, e evitar o problema que tivemos em 2017.

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