Inocêncio das Neves: “Pode regular-se tudo, mas nunca os preços”
Docente universitário vê vantagens no câmbio flutuante, mas defende que se vá mais longe, liberalizando o mercado cambial. Impostos devem subir, mas os serviços prestados também têm de melhorar.
Fonte: Mercado
Como olha para as últimas medidas de política monetária e cambial do banco central?
O cenário macroeconómico do País tem exigido políticas expansionistas, mas políticas expansionistas a curto prazo acabam por trazer repercussões sociais. Antecedendo um período eleitoral, não foram naturalmente favoráveis à governação. Por isso, é compreensível que o actual Governo tenha começado a sua actuação com outras políticas.
Deitar por terra as políticas restritivas, controlar a inflação, era o mínimo que se esperava numa fase pré-eleitoral. Eram medidas necessárias. Os métodos de alocação directa de divisas eram feitos com base na importação de bens alimentares, matérias-primas e serviços prioritários, como a saúde e bens de capital, que servem de incentivo à produção nacional. Mas desde 2015 que temos estado a falar das medidas que estão a ser implementadas agora. Penso que a nova administração do Banco Nacional de Angola (BNA) está a ser prudente, ao começar, timidamente, a pôr a taxa de câmbio flutuante a funcionar.
Acredita que o regime de câmbio flutuante com bandas vai funcionar?
O BNA, infelizmente, detém o monopólio da oferta de divisas no País e, desta forma, também continuará, de forma administrativa, a controlar as flutuações. O que de facto acontece é que, sempre que se tenta fazer gestão macroeconómica por via administrativa, sem recursos para sustentar estes artifícios, falha-se. Só é possível manter uma economia com mecanismos de planificação centralizada se existirem excessos, como ocorreu nos últimos dez anos antes da actual crise – com excepção do período de 2009 – , em que tivemos excedentes de liquidez.
Quando as nossas reservas estavam altas, o mercado cambial era gerido de forma artificial. Mas, hoje, não é possível sustentar o mercado cambial desta forma. O que tem de acontecer é que temos de passar para um mercado cambial livre, para estimular a economia e dar maior liberdade à iniciativa privada. Pode regular-se tudo, mas nunca os preços.
Quais os impactos que resultarão do actual regime cambial, a curto e médio prazos?
A curto prazo, haverá um aumento da inflação – uma subida generalizada dos preços é inevitável. Mas há também aqui oportunidades que, se bem aproveitadas, podem evitar que tal ocorra em alguns bens. Grande parte dos bens
que compõem a cesta básica, na verdade, acabam por ser importados com recurso a moeda estrangeira, mas ao câmbio não-oficial. Muitos importadores recorrem ao mercado paralelo de divisas. Assim, muitos dos preços praticados já estão indexados à taxa de câmbio do paralelo. Embora não seja a taxa real, é a que está mais próxima da realidade. Mas, no caso dos importadores que sempre dependeram do BNA, como as grandes superfícies, por exemplo, veremos um aumento substancial dos preços. O Estado deve criar mecanismos de defesa das populações mais desfavorecidas.
Câmbio flutuante vai desincentivar recurso ao mercado paralelo, e procura de moeda estrangeira vai diminuir
Até quando o kwanza pode desvalorizar, dentro dos limites previstos?
Não é uma questão só de tempo, porque a solução para a desvalorização do kwanza não se resolve só com políticas cambiais. Tem de se levar em conta as políticas fiscais também. Se as acções de políticas fiscais previstas no Relatório de Fundamentação do OGE 2018 se efectivarem, perspectiva-se que, a partir de 2019, seja possível observar aumentos interessantes da produção nacional, especialmente de produtos da cesta básica. Mas terão de ser suficientes para reduzir as necessidades de moeda estrangeira para a importação desses produtos, em dois anos. Para bens de capital, acredito que só depois de 2022.
O Estado não deveria explicar melhor as novas políticas fiscais que está a implementar, incluindo o impacto da subida de impostos?
O problema é que o Estado habituou-se, no passado, a ter excedentes de liquidez, devido à venda do petróleo. O Governo preocupou-se pouco com a população. Durante muito tempo, os preços de alguns serviços públicos essenciais eram subvencionados com receitas do petróleo, quer o povo pagasse ou não, e Governo não se preocupava tanto com a cobrança dos impostos, porque o excedente de liquidez pagava: nem o Estado se obrigava a si mesmo a prestar contas.
Nos países nórdicos, os impostos arrecadam até 50% do rendimento das pessoas. O OGE deve ser cada vez mais financiado com recurso a impostos que vêm das pessoas e deve reduzir-se substancialmente a contribuição dos recursos naturais. É importante que o grau de consciência da população aumente, em relação à exigência dos seus direitos.
O Programa de Estabilização Macroeconómica prevê aumentos de impostos, que, associados à desvalorização do kwanza, empobrecem o cidadão…
Não sou contra o aumento e a cobrança de impostos, sou totalmente a favor da cobrança de preços justos, que devem ser aqueles que os participantes estão dispostos a pagar e a cobrar, desde que, do lado de quem presta o serviço, haja garantia da qualidade para quem o compra. Dito de outra forma, o cidadão não lamentaria o aumento dos preços dos transportes públicos, da energia ou água, se estes serviços fossem de qualidade e regulares. Sou apologista da subida das taxas, mas o povo deve cobrar mais do Estado. Os ajustes fiscais também prevêem incentivos que podem atrair investimentos. Ainda nesta legislatura, perspectiva-se a construção de refinarias que vão também reduzir a pressão sobre as divisas para a importação de derivados de petróleo, a médio prazo.
Será por isso que os leilões do BNA disponibilizam mais divisas para a importação de matérias-primas, peças e equipamentos fabris?
O Estado quer, com isto, criar as bases para que o investidor, nacional e estrangeiro, construa fábricas e equipamentos, traga tecnologia e know-how, com apoio institucional.
O actual regime cambial reduzirá a margem de manobra entre os empresários que dependem do mercado cambial oficial e os do paralelo?
Definitivamente. Vai reduzir a margem que existe entre o formal e o paralelo. Isso vai desincentivar o recurso ao mercado paralelo e, por outro lado, a procura de moeda estrangeira vai reduzir substancialmente. Ou seja, o poder de compra de divisas vai reduzir-se consideravelmente. Há pessoas que exerciam uma pressão muito forte sobre o sector bancário, para adquirirem dólares, porque sabiam que, com 100 mil Kz, por exemplo, no sector formal, adquiriam mais ou menos 400 USD, mas, no paralelo era pouco mais da metade. Agora, todos vão estar mais ou menos dentro da mesma banda. O facto é que as pessoas terão menos capacidade de comprar moeda estrangeira.
Era preciso que o banco central não fosse a entidade exclusiva de venda de moeda estrangeira aos bancos
O BNA deve continuar a advogar o restabelecimento das relações entre os bancos comerciais angolanos com os correspondentes estrangeiros?
Penso que sim. Porque, além de esse ser um problema que diz respeito aos bancos com os seus correspondentes, há questões que envolvem o BNA, ao mais alto nível, enquanto autoridade reguladora. A sua posição de enforcement para efeitos de supervisão e comportamental sinaliza ao exterior que, internamente, o mercado bancário é digno
de confiança. Em matéria de regulação, estamos bem, há um comprometimento muito forte no combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo. Mas, enquanto não houver, na prática, o enforcement de toda a legislação que existe, os bancos correspondentes continuarão a desconfiar dos nossos.
A par do sector petrolífero, que sector tem potencial para tirar o País da situação em que está?
O sector financeiro, nomeadamente o bancário.
Então por que razão demora a exercer o seu real papel?
Devemos entender que o sistema bancário angolano é novo, tem menos de 30 anos. Um dos principais desafios com que o sector se depara para exercer efectivamente a sua função, que é financiar a economia, é a morosidade do registo de títulos de propriedade. A segunda razão é a falta de informação financeira credível em relação aos proponentes ao crédito. De uma maneira geral, não há contabilidades organizadas. Por consequência disso, o Doing Business, já em 2013, chegou a uma conclusão interessante: os bancos preferem emprestar às grandes empresas, em detrimento das pequenas, aos empresários da capital em detrimento dos que estão no interior, cujas actividades económicas garantam rendimento de curto prazo. Ou seja, os bancos comerciais angolanos fizeram, ao longo destes anos, tudo ao contrário do que os manuais de economia ensinam.
Como se resolve isto?
A reforma da Justiça tem de acelerar. Têm de formar-se tribunais específicos para o sector empresarial, e reformular-se o funcionamento das conservatórias de registo de propriedade e notários. Porque é que, entre 2009 e 2014, o crédito automóvel disparou? Porque notámos uma melhoria nas conservatórias de registo da propriedade automóvel.
O sector petrolífero pode ter um papel fundamental. Com a valorização do preço do crude e consequente aumento das receitas petrolíferas, pode haver maior disponibilidade de divisas?
O sector petrolífero acaba por desempenhar um papel importante neste mercado cambial. Julgo que as medidas que se deviam adoptar agora deviam ser como eram antes de 2012, quando foi aprovada uma lei que regulava o regime cambial específico para o sector petrolífero. Essa lei foi aplaudida, porque a passagem do fluxo financeiro em divisas que estavam fora do circuito bancário nacional foi muito bem-vinda. Isso ajudaria a banca a estimular a economia.
Porque acha que esta medida não resultou?
Não resultou, porque os pressupostos monetários que determinam o valor do kwanza não são constantes. O kwanza não consegue desempenhar as suas funções, enquanto moeda, porque o nosso produto de exportação é transaccionável no mercado estrangeiro, e por ser o único produto de exportação que representa uma parte significativa das fontes de divisas. O que remete o kwanza para uma condição de moeda que só serve de meio de troca ao nível doméstico. É uma moeda que não é transaccionável fora do País, nem serve para reserva de valor. A título de exemplo, as pessoas não usam o kwanza para fazer poupança. Por não existirem estes pressupostos, no passado recente, os excessos de liquidez faziam-se em moeda estrangeira, nomeadamente em dólar, e o kwanza sobrevalorizava-se artificialmente. Os bens e serviços produzidos localmente acabaram por ser os factores predominantes do valor do kwanza. Então, acabou por falhar. 0
Como inverter esta situação?
Temos de voltar para a situação inicial, que era permitir que o dólar ou o euro sejam transaccionáveis internamente, ou seja, permitir que as empresas voltem a pagar em divisas aos seus trabalhadores. Era preciso que o banco central
não fosse a entidade exclusiva de venda de moeda estrangeira aos bancos, isso ia permitir que houvesse, de facto, um mercado cambial secundário.
O preço do petróleo está a subir para níveis satisfatórios para a nossa economia. Esta subida pode ajudar significativamente ao aumento das receitas?
Quanto mais o preço do petróleo subir, desde que as quantidades produzidas exportadas sejam de direito de produção de Angola, mais as reservas internacionais irão aumentar, pois o crude é transaccionável em dólar.
Uma das dificuldades que ouvimos com recorrência dos produtores nacionais tem que ver com o escoamento de produtos do campo para a cidade. Quais seriam as soluções mais eficazes, no curto prazo, para se resolver esta situação?
Penso que faz parte das prioridades do Governo para incentivo e fomento da produção interna, entre as quais há duas pertinentes: o restabelecimento do Centro de Logística e de Distribuição (CLOD) de Viana e a construção de mais dois no interior do País. Os CLOD são a solução ideal para se escoar a produção do campo. Lembro que, em 2007, se desenhou um programa de restruturação do sistema logístico de distribuição. O conceito foi muito bem desenhado, mas mal executado. Conheci o CLOD do Km 30 de Viana, é uma estrutura imponente, que pode ser replicada no interior do País, para desenvolver o comércio mais ao nível local. O produtor de laranjas no Cuanza Sul não precisa, necessariamente, de vir a Luanda, pode ir a Benguela ou ao Huambo, e as suas mercadorias podem vir a ser distribuídas e exportadas a partir do CLOD. Além disso, não precisa de ser o Estado a financiar a construção desses CLOD, via parcerias público-privadas. E estes CLOD podem acelerar a distribuição para as grandes, médias e pequenas superfícies em tempo útil.
Os bancos comerciais fizeram, ao longo destes anos, tudo ao contrário do que os manuais de economia ensinam
Deve haver maior controlo das acções do Estado?
Sim, mas tão ou mais importante do que o OGE é a Conta Geral do Estado, que é pouco discutida e analisada.
Porquê?
O OGE é um conjunto de planos e programas que podem, ou não, ser executados. Mas interessa-nos saber o que foi executado. Isto vai para além da perspectiva legal. A própria Lei de Bases do Orçamento do Estado traz alguma matéria sobre a CGE, para além do decreto presidencial que regula a contabilidade pública. Mas deve ir-se mais longe, quando a CGE for feita, também para responder às expectativas dos utilizadores dessa informação a nível internacional. Aí, sim, podemos, mais facilmente, discutir o que foi feito com as receitas dos impostos que pagamos. Os jornais, as rádios e as televisões devem esmiuçar, analisar bem e explorar a CGE, porque ela demonstra o nosso desempenho e a posição da dívida, embora essa informação conste no Relatório de Fundamentação do OGE… mas não é a mesma coisa.
O que faz atrasar a apresentação pública da CGE?
A falta de pressão da sociedade. A sociedade civil, os partidos políticos e todos devem exigir a apresentação atempada da CGE, e justificações dos gastos e dívidas contraídas pelo Estado. Quando isto acontecer, estaremos noutro nível de transparência da gestão da coisa pública.
A CGE também deve ser apresentada em IAS-IFRS?
Definitivamente. Imagine o que é termos registado e publicado, na CGE, todo o património imobiliário e hidrográfico do Estado angolano. Há um exemplo muito recorrente nos fóruns de discussão entre contabilistas: quanto vale o rio
Kwanza? Como é que as normas internacionais de contabilidade pública dão tratamento à mensuração do valor disto? Nem todos conseguem implementar, mas é possível. O Brasil, por exemplo, tem experiências destas já realizadas, e nós podemos ter. Não é coerente que o Estado, para além de tarde, ainda apresente as contas públicas com ineficiência, para depois Administração Geral Tributária vir exigir às empresas a apresentação das contas até 31 de Maio de cada ano. O Estado deve ser exemplar, tomar a iniciativa de prestar contas ao povo, para que este preste contas ao Estado, e desta forma desenvolver-se a cultura de prestação de contas.
Qual é a sua opinião em relação ao repatriamento de capitais?
Penso que é uma decisão legítima face ao actual contexto. Na verdade, é uma abordagem ‘religiosa’. Há algum paralelismo com a amnistia que tem sido dada ao longo dos anos em que Angola viveu em guerra, até à mais recente, de 2016, para todos os crimes comuns, cujas penas não ultrapassassem os oito anos. Temos, portanto, uma cultura de perdão que tem de acabar. Há perdões que são benéficos para o bem comum, mas há outros que são prejudiciais. Mas vamos dar tempo, acompanhar este processo e avaliar o quão eficiente será esta lei.
Um financeiro forjado no petróleo e na banca
Inocêncio das Neves é actualmente docente universitário de Direito dos Petróleos e Recursos Minerais na Universidade Metodista de Angola. A sua vasta formação profissional tem como ponto de partida o ano de 2011, quando foi graduado em Contabilidade e Gestão de Empresas pelo Instituto Superior Politécnico do Cuanza Sul. Pós-Graduado em Direito e Gestão de Negócios de Petróleo e Gás pela Universidade Agostinho Neto (2014). Fez Contabilidade Avançada de Exploração e Produção de Petróleo pela BP Finance University (2014), é certificado em Contabilidade Gerencial pelo Chartered Institute of Management Accounting do Reino Unido (CIMA 2015). No ano passado, fez também o curso de actualização em Contabilidade da Ordem dos Contabilistas e Peritos Contabilistas de Angola, do qual é membro. Enquanto gerente financeiro, concluiu os cursos de Gestão Bancária, Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, Gestão de Risco Reputacional, Gestão de Dados Confidenciais, Leis da Concorrência e Mercados pelo Standard Chartered Bank.