Covid-19: o que leva o Estado angolano a querer ver as mensagens dos seus cidadãos?

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Por Publico|António Rodrigues

Estado de emergência, prolongado por mais 15 dias, mantém a suspensão da “inviolabilidade da correspondência e das comunicações”. João Pinto, deputado do MPLA, justifica a medida com a necessidade de recolher meios de prova contra os infectados que não cumprem os deveres de quarentena.

O Presidente angolano, João Lourenço, decidiu prolongar a partir das 00h00 desta segunda-feira o estado de emergência, que vigora no país desde 25 de Março, por mais duas semanas, depois de ouvido o Parlamento e por considerar “que persistem as razões que fundamentaram” a sua declaração, “nomeadamente o risco de propagação” dos casos de covid-19.

O decreto presidencial 128/20 segue a mesma linha do anterior e inclui algo que não esteve previsto durante o primeiro mês de confinamento obrigatório, a suspensão da “inviolabilidade da correspondência e das comunicações”, que se junta, assim, aos outros direitos suspensos “no todo ou em parte”, como sejam o direito de propriedade, a inviolabilidade do domicílio, a liberdade de reunião e manifestação e a liberdade de greve, entre outros.

João Pinto, jurista e deputado do MPLA, o partido do Governo, garante ao PÚBLICO que esta inclusão visa dar aos tribunais a possibilidade de usar mensagens, imagens e denúncias nas redes sociais como matéria de prova contra os infectados com covid-19 que violarem o dever de quarentena. “Até porque circularam mensagens que vieram provar que os cidadãos envolvidos na transmissão local foram exibindo fotografias de festas” onde teriam estado, afirma.

“Não estando previsto no decreto presidencial, abria uma lacuna tomando em conta o facto de o decreto presidencial ter que elencar, por força da lei 17/91, quais os direitos suspensos ou limitados”, explicou o advogado, que tem uma tese de doutoramento para defender sobre “A aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias na Constituição angolana de 2010”.

O artigo 57.º da Constituição prevê restrições aos direitos, liberdades e garantias, mas “devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e democrática”, de modo a se poder “salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. E salienta, no artigo 58.º, que ao optar pelo estado de emergência, a declaração e execução do mesmo “devem sempre limitar-se às acções necessárias e adequadas à manutenção da ordem pública, à protecção do interesse geral, ao respeito do princípio da proporcionalidade” e ao “estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.

O facto de, por via do decreto presidencial, as autoridades angolanas poderem ler as cartas e as mensagens dos seus cidadãos, escutar as suas conversas e usarem esse material privado como prova pública é relativizado por João Pinto.

“Tem carácter geral e abstracto, mas é para situações adequadas ao combate da situação que nós vivemos e que é uma situação nova”, justifica o deputado do MPLA. “Sempre que houver o interesse de aferir se um sujeito ou cidadão não cumpre as exigências da quarentena, marca encontros, publica fotografias, não aparece nos sítios, a polícia terá como prova esses dados.”

Nelson Domingos, jurista e cientista político angolano, lembra ao PÚBLICO que a Lei da Identificação ou Localização Celular e da Vigilância Electrónica (Lei n.º 11/20 de 23 de Abril) foi “aprovada em plena vigência do estado de emergência”, o que por si só “é bastante sugestivo, abrindo espaço para legitimar o arbítrio”. É provável, afirma o professor da Universidade Agostinho Neto, que venha “daí o interesse na manutenção da suspensão do direito à inviolabilidade das correspondências e das comunicações”.

Embora concorde que dar ao Estado a possibilidade de aceder à correspondência e comunicações dos cidadãos angolanos “tem carácter geral e abstracto”, o deputado do MPLA sublinha que a sua aplicação visa apenas “situações adequadas”, como o “combate” à actual pandemia, e deve ser sempre aplicada “com adequação e proporcionalidade”.

Algo que não convence muito Nelson Domingos, até porque o académico não vê grande ligação entre a emergência de saúde pública e a necessidade de ler e escutar as conversas alheias ao espaço público. “O estado de emergência declarado em Angola decorre da pandemia da covid-19, o que torna difícil estabelecer alguma correlação com a supressão do direito à inviolabilidade das correspondências e comunicações”, diz.

Na sua justificação para prolongar o estado de emergência, João Lourenço disse que “o surgimento de casos de transmissão local, situação que aumenta o risco de propagação do vírus” da covid-19 em Angola, levou-o a recomendar “a continuidade da adopção de medidas excepcionais, nomeadamente a suspensão, total ou parcial, de certos direitos fundamentais, com vista à salvaguarda da vida humana”.

O país tem até agora 45 casos positivos (dois mortos) – os dois mais recentes, uma menina de três anos e um homem de 45 anos, ambos de transmissão local. Mas ainda há 350 testes em análise, tendo até esta segunda-feira, segundo a ministra da Saúde, Sílvia Lutucutra, sido recolhidas amostras de 5642 pacientes. O Governo tem planos de alargamento do número de pessoas testadas, com abertura de mais três centros de diagnóstico em Luanda.

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