CAMPO DA MORTE: CASO N.º 21: SALVAR O AMIGO É INTERFERIR NO TRABALHO DA POLÍCIA

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VÍTIMAS: Santos Miguel Samuel “Califa”, 22 anos, natural de Luanda; Emílio Manuel Mbaxi “Sebas”, 22 anos, natural de Luanda

DATA: 28 de Janeiro de 2017

LOCAL: bairro Cardoso, Kikolo, município de Cacuaco

OCORRÊNCIA:

Sebas e Califa receberam a visita de duas amigas, provenientes de Viana, em casa do primeiro. Cozinharam e almoçaram juntos. Califa ausentou-se depois do almoço para ir cortar o cabelo a um cliente, no salão da irmã, onde trabalhava, e regressou depois ao convívio.

“Às 18h45, formos acompanhar as duas amigas à paragem dos candongueiros [táxis colectivos]. Elas seguiram e nós ficámos ali a beber cerveja. Eu disse ao Califa para irmos a casa buscar o meu telefone, de que me havia esquecido. Já eram 19h00”, conta Sebas.

De acordo com o seu testemunho, no regresso a casa, a poucos minutos do local onde se encontravam, depararam-se com dois jovens. “Mal [os dois] viram o Califa começaram a disparar [com pistolas]. Atingiram-no com um tiro no peito e um segundo na barriga. Ele virou-se para fugir e acertaram-lhe com mais um tiro na nuca”, revela Sebas.

“Quando mataram o Califa, pensei que me deixariam viver, porque eu não sabia de nada [de actos de delinquência alheios]”, diz Sebas. O jovem é marceneiro de profissão e exercia o seu ofício no mercado do Kikolo, onde tinha o seu espaço para a reparação de móveis.

“Nunca roubei, nunca fiz mal a ninguém. Eu encontrava-me com o Califa apenas aos sábados e domingos, porque trabalhava de segunda a sexta-feira”, justifica.

Para os pistoleiros, nada disso interessava. “Viraram-se contra mim e os dois começaram a disparar. Atingiram-me com um tiro no braço direito. Eu já estava a correr quando o segundo tiro me atravessou o abdómen e saiu do lado direito”, narra o jovem.

Sebas conseguiu correr alguns metros, mesmo depois de ter sido alvejado pela terceira vez, com um tiro na coxa esquerda: “Entrei num edifício de dois andares. Subi ao primeiro andar e caí [de bruços]. Os dois seguiram-me. Um dos assassinos mexeu a minha cabeça com a pistola para ver se eu ainda estava vivo. O outro disse: ‘Vamos embora, porque a população vem daqui a bocado.’ Eu mal respirava. Pensaram que já estava morto, e por isso foram-se embora.” Sebas levantou-se e saiu para a rua sem ajuda de ninguém, contrariando o conselho de uma jovem que o viu nas escadas após a saída dos perseguidores e que queria escondê-lo.

“A população estava com medo de me ajudar. Como era perto de casa, um amigo meu — o Paciência — tomou logo conta do caso e apareceu com um vizinho, que tinha uma viatura, socorrendo-me. Levou-me para o Hospital dos Cajueiros, onde não havia condições, e transferiram-me para o Hospital Américo Boavida.”

“Por me ter socorrido, os homens do SIC foram duas vezes a casa do Paciência”, denuncia Sebas.

Paciência confirma o sucedido, relatando que, no dia a seguir ao tiroteio, os “agentes do SIC foram a minha casa à minha procura. Tive de dormir em casa da minha tia”.

Passados alguns dias, a 1 de Fevereiro, “os homens do SIC interpelaram-me a caminho do serviço. Primeiro, viram se a minha cara não estava no tablet. Depois disseram-me para nunca mais interferir no trabalho da polícia”.

Apesar de não saber os nomes dos agentes, Paciência garante ser capaz de os identificar. “Eram quatro agentes que circulavam num Hyundai i10, cor de vinho, com vidros fumados. Avisaram-me de que, da próxima vez encontrasse alguém naquele estado, não me devia meter no assunto. Deram-me conselhos e foram-se embora.”

“Não sei porque mataram o meu irmão”, lamenta Maria da Conceição. A jovem recorda que, até 2015, Califa viveu no município do Cazenga, onde fazia parte de um grupo que volta e meia se envolvia em lutas. “Numa dessas lutas, rasgaram-lhe o queixo e os lábios com uma lâmina, e apanhou com uma catana na testa”, conta.

Após esse incidente, Maria da Conceição resgatou o irmão, levando-o para viver consigo e empregando-o no seu salão como barbeiro e tatuador. Já a viver consigo, Califa esteve detido uma única vez, por uma noite, na Esquadra do Alfa-5, no bairro Combustível, por suspeita de participação no roubo de baterias de automóvel num parque de estacionamento no bairro Cardoso. “Depois disso, as únicas confusões que o Califa arranjava eram com os clientes a quem ele cortava o cabelo e que se recusavam a pagar”, afirma.

Entretanto, cerca de nove meses após a cirurgia a que foi submetido por causa do tiro que lhe atravessou o abdómen, Sebas retomou o seu trabalho, que requer grande esforço físico e manuseamento de objectos pesados.

 

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais

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