CAMPO DA MORTE: CASO N.º 10: TÃO LOGO SAIU EM LIBERDADE

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VÍTIMAS: Senas Pedro Kiala “Senacristo”, 25 anos; António Matias da Conceição, 31 anos, natural do Bengo; Osvaldo Miguel Arriaga, 26 anos; um indivíduo não identificado; Hélder Pedro Kiala, 20 anos [irmão de Senacristo, morto a 16 de Junho de 2016]

DATA: 29 de Janeiro de 2017

LOCAL: Traseiras do Estádio 11 de Novembro, município de Viana

OCORRÊNCIA:

Em Junho de 2015, Senacristo e mais oito membros do seu grupo foram detidos por suspeita de assalto a um banco. A 15 de Dezembro de 2016, foram libertados.

O caso de Senacristo proporciona um melhor entendimento sobre o modus operandi do SIC.

Em 2015, o SIC deteve Senacristo, o pai, duas irmãs e a esposa. “Eu também fui espancado na Esquadra da Centralidade do Kilamba. O chefe da investigação acusou-me de ser cúmplice do meu filho. Eu e o meu filho fomos espancados na mesma sala. Pedi que o torturassem longe da minha presença ou que nos matassem a ambos. Levei uma bofetada tão violenta na cara que caí”, recorda António Kiala.

“Um chefe que veio do Comando Provincial [da Polícia Nacional] exigiu a minha soltura, das filhas e da minha nora, tendo afirmado que o crime não é transmissível. O mesmo chefe perguntou se todos os que são detidos são-no com as suas famílias”, relata.

Passados dois dias, os mesmos familiares foram de novo detidos, desta vez incluindo um irmão de Senacristo, João Pedro, e conduzidos à casa do suspeito, nas imediações do Estádio 11 de Novembro, em Viana, para mostrarem as armas. Sem o conhecimento da restante família, João Pedro e a cunhada tinham enterrado quatro Kalashnikovs e uma pistola pertencentes a Senacristo. Os dois passaram três meses detidos como cúmplices.

“A partir daí, o SIC vinha sempre a minha casa, como se fossem regularmente a um restaurante deles. Ameaçavam-me directamente, como aconteceu na Esquadra do Kilamba, que matariam o Senacristo tão logo ele saísse em liberdade”, revela o pai.

Depois, numa das suas visitas regulares, os homens do SIC constaram que havia mais filhos: “Afinal este mais velho tem muitos filhos [eu tinha sete filhos e duas filhas] e a nossa missão é a de matar, mas quando chegamos aqui há sempre intervenção.”

António Kiala explica que um dos agentes envolvidos na detenção de Senacristo, conhecido com Mapanda, “ligou ao chefe a pedir autorização para matá-lo, mas o chefe recusou”. “É isso que eles consideravam intervenção”, enfatiza.

“Esse Mapanda namorava com a mulher do meu filho e, por isso, não queria que eles voltassem a viver juntos. Quando o meu filho saiu da cadeia, exigi que deixasse a mulher e ficasse comigo na lavra, em Caxito, mas ele não me ouviu. O amor é mesmo assim”, denuncia.

Com Senacristo e João detidos, António Kiala encontrou conforto na visita do seu filho Eduardo, de 19 anos, estudante universitário no Uíge.

No dia em que este chegou a Luanda, a casa do pai, foi imediatamente detido pelos agentes do SIC e passou uma noite na cadeia, “sem motivo”.

A 16 de Junho de 2016, Hélder Pedro Kiala, de 20 anos, que também estudava no Uíge, deslocou-se a Luanda para ver a família e comprar uma motorizada. “Não o vimos vivo sequer. No dia seguinte, ouvimos dizer que estava morto no bairro Hoji Ya Henda. Fomos vê-lo e não tinha sinais de tiro.

Cortaram-lhe as veias da nuca. Agora entendo as ameaças dos homens do SIC, que eu tinha muitos filhos”, nota António Kiala.

A 28 de Janeiro passado, Senacristo saiu de manhã para tratar de documentos pessoais.

A 29 de Janeiro, de madrugada, juntamente outros três indivíduos foram executados nas imediações do Estádio 11 de Novembro, todos com tiros na cabeça. Um jovem postou as imagens na sua página de Facebook.

Durante o dia, os corpos foram removidos e deitados noutro local, conforme depoimento que se segue. A 1 de Fevereiro, as famílias identificaram as vítimas já na Morgue Central.

 

ANTÓNIO MATIAS

O sogro Ramiro “Kito”, em casa de quem António Matias vivia, ofereceu-lhe boleia para ir buscar o bilhete de identidade de que havia tratado. António recusou, preferindo ir com amigos, por volta das 10h00. Caminhou cerca de 500 metros até à paragem de táxi, e essa foi a última vez em que familiares e amigos o viram com vida.

De acordo com o sogro, o corpo de António foi lançado numa pequena lixeira em Viana, juntamente com os corpos dos dois amigos, Osvaldo e Senacristo, na noite seguinte, próximo do DreamSpace, embrulhados em sacos de plástico pretos. “Os guardas locais viram uma carrinha Mitsubishi Canter a deixar três sacos de lixo e acharam um bocado estranho que desconhecidos fossem deitar lixo ali carregado numa viatura, mas nada disseram. Depois, deram conta de que eram os corpos.”

“Nas diligências por nós efectuadas, recebemos a informação de que eles foram mortos pelo Anderson ‘DCP’, pelo Coló (do Marçal), pelo Vander (da Ilha de Luanda), pelo Nucho (Luanda-Sul) e pelo Manda Mbula (Rangel). São bandidos muito famosos, colaboradores do SIC”, revela o sogro.

António foi atingido com um tiro no nariz e, segundo o sogro, apresentava sinais de tortura. Os outros dois, também segundo o seu testemunho, foram mortos com tiros na cabeça e exibiam sinais de tortura.

 

OSVALDO ARRIAGA

“Eu gostaria de saber o que aconteceu. O meu irmão foi morto com um tiro na testa. Só o reconhecemos pela roupa. Parece-me que foi muito torturado, porque só tinha dois dentes na boca”, afirma Paula, irmã de Osvaldo Arriaga.

Acusado de roubar um cartão multicaixa, Osvaldo estivera preso, recebendo ordem de soltura a 28 de Novembro de 2016.

“A DNIC [SIC] foi a casa do meu irmão mais velho e levou uma viatura i10, uma aparelhagem de som muito cara, um Hiace e uma motorizada (que eram do meu irmão mais velho). Nunca devolveram os bens”, conta Paula.

Segundo a jovem, pela libertação de Osvaldo, a família fora obrigada a pagar dois milhões de kwanzas, transferidos para “uma conta do Estado”.

Ele não foi a julgamento e assinava quinzenalmente, sob termo de identidade e residência, no Tribunal do Kilamba Kiaxi.

Os três tinham registo criminal. “O António saiu em liberdade condicional em Julho do ano passado, depois de nove meses detido por tráfico de droga”, diz Ramiro “Kito”, que o acompanhava às audiências de julgamento, em curso quando foi morto. Osvaldo e Senacristo também se encontravam em liberdade condicional, depois de terem sido detidos por assalto ao banco BIC de Viana.

Quando participaram o caso ao SIC, “disseram-nos apenas: ‘está registado’. Mais nada”, lamenta Ramiro “Kito”.

 

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais