CAMPO DA MORTE: CASO N.º 1: “ACABADO” NA ESQUADRA

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VÍTIMAS: Zito João Gonçalves “Zé Pik”, 21 anos, natural de Luanda; Juliano Chitumba “Leão”, 22 anos, natural do Huambo; Basílio Afonso Ngueve “Obama”, 18 anos, natural de Luanda

DATA: 6 de Novembro de 2017

LOCAL: bairro do Compão, Kikolo, município de Cacuaco

OCORRÊNCIA:

Zé Pik, bailarino do grupo musical Bate à Toa, actuou num evento musical realizado junto à administração do Kikolo, até às 23 horas. De seguida, Zé Pik e dois amigos — Leão e Obama — decidiram prolongar a noite de diversão, juntando-se a uma festa no bairro da Bandeira.

À meia-noite, a segunda festa foi interrompida, e os três jovens seguiram para uma terceira no salão de festas da Electro Jennifer. De madrugada fora, quando abandonaram a festa, já na via pública, três homens ordenaram aos rapazes que parassem.

“A rua tinha muita iluminação e eu estava a poucos metros dos jovens. Os três jovens saíram de uma rua a correr. Três indivíduos mandaram-nos pôr as mãos ao ar”, conta uma das testemunhas. Estavam defronte da Igreja Católica local.

“O Zezito [Zé Pik] parou e atingiram-no no peito. O Basílio apanhou um tiro na mão e gritou ‘não me matem só’. O Leão levou um tiro no pé e outro na barriga. Parecia morto, afinal fingiu-se, ainda tinha muita vida”, descreve.

Segundo a mesma testemunha, “Basílio pulou para o outro lado da estrada e foi morto com quatro tiros na cabeça e mais um noutra mão”. Uma prima de Basílio corrobora a informação.

Outra testemunha, que também prefere o anonimato, indica que os assassinos se retiraram de imediato e que Leão gritou por socorro. “Ela ainda estava bem vivo, fingiu-se de morto durante a acção.”

Uma das testemunhas conta que durante o crime estava presente o Big, conhecido no bairro como colaborador do SIC e indivíduo responsável por indicar os alvos a abater naquela zona. “Quando os jovens são mortos nessa área, o Big está sempre presente. É ele quem mostra. O irmão dele é um grande gatuno, mas ele protege-o e manda matar muitos inocentes”, denuncia uma das testemunhas.

Depoimentos de familiares e amigos indicam que Leão foi levado por um patrulheiro da Polícia Nacional. Um tio de Leão, que se recusa a falar publicamente sobre o assunto, acompanhou o sobrinho, tendo seguido também na viatura policial.

Segundo vários depoimentos recolhidos, a polícia informou o tio de que o ferido teria de ser levado para a Esquadra do IFA [Comando da III Divisão, município do Cazenga], e de que só depois de aí assinado um termo de responsabilidade poderiam transferi-lo para o hospital.

Consta que o ferido ainda falou com o seu tio na viagem até à esquadra. Depois, enquanto registava a ocorrência dentro da esquadra, o tio ouviu tiros, conforme declarações corroborados por familiares e amigos. Ao sair, viu o corpo do seu sobrinho no chão, já coberto. Fora assassinado dentro da esquadra com dois tiros na cabeça.

“Os mesmos homens que assassinaram o Zé Pik e o Obama e deixaram o Juliano vivo foram terminar o trabalho na esquadra”, explica um dos familiares das vítimas.

“Os homens que estão a fazer esse trabalho dos assassinatos são controlados pela esquadra do IFA”, denuncia outro dos familiares.

Ainda outro familiar refere que um dos agentes do SIC disse ao tio que o seu sobrinho estava a ser muito procurado, estava na lista “e tinham de acabá-lo ali mesmo”.

Na eventual origem destes assassinatos, os familiares revelam que, na tarde de 3 de Novembro, Leão e Obama haviam puxado a carteira de uma senhora que passava de motorizada.

Consta que essa senhora regressou ao local do assalto com Big, tendo conseguido identificar os assaltantes e a residência dos respectivos familiares. “O Big disse: ‘esses miúdos vão mamar’”, conta a prima de um dos malogrados. As famílias confirmam que Zé Pik não participou no assalto, e que os meliantes obtiveram 12 mil kwanzas do roubo.

Em Janeiro, no pico das matanças naquela área, a família de Obama mudou-se, procurando mantê-lo em segurança. Passados três meses, contra a vontade da família, Obama regressou, pois acreditava que nada tinha feito que justificasse a sua execução.

“O Basílio bebia muito. Quando fazia os seus assaltos era só para beber. Uma semana antes de ser morto já estava a ser procurado. No dia da sua morte, dois agentes da DNIC [SIC] ainda se sentaram com eles na pracinha e pagaram-lhes cervejas e combinaram encontrar-se na festa”, revela a prima do malogrado.

“Afinal estavam a combinar a morte deles”, afirma.

 

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais