DIFERENÇA E AUTODETERMINAÇÃO
Resumo: O presente artigo é uma recensão crítica do terceiro capítulo do livro de Achille Mbembe cujo título é a crítica da razão negra. Ao ler a obra procurámos entender a noção do negro no contexto de pessoas escravizadas, da escravatura, da colonização e da pós-independência em África. A narrativa feita por Mbembe tem uma profundida académica que revela um negro cujo os longos anos de dominação os descivilizou e foi coisificado ou mesmo transformado em mercadoria para produzir a riqueza de escravocratas. Obviamente, a visão eurocentrista fez recurso a coação psicológica, meios violentos e a falsificação da história como parte de um contributo à pauperização antropológica e a negação da axiologia humana do negro.
Palavras-chaves: Diferença, Autodeterminação, África, Negro e Branco.
Abstract: This article is a critical review of the third chapter of Achille Mbembe’s book whose title is the critique of black reason. In reading the book we sought to understand the notion of the Negro in the context of the slave trade, slavery, colonization and post-independence in Africa. The narrative made by Mbembe has a profound academic that reveals a black whose long years of domination and was considered or even transformed into merchandise to produce the wealth of slaveowners. Obviously, the Eurocentric vision made use of psychological coercion, violent means and the falsification of history as part of a contribution to the anthropological pauperization and denial of the human axiology of the Negro.
Keywords: Difference, Self-determination, Africa, Black and White.
Introdução
A crítica da razão negra é uma reflexão sociológica, antropológica, política e até histórica do cientista social africano Achille Mbembe sobre a posição do negro e da África no passado escravocrata e no actual contexto mundial. O nosso trabalho de recensão crítica debruçar-se-á sobre o terceiro capítulo que faz uma grande abordagem sobre a diferença e autodeterminação.
A discussão sobre a diferença e autodeterminação leva Achille Mbembe, a assumir uma narrativa sobre o negro dentro de contextos históricos específicos. Ele entende o negro como um conceito criado pelo colonizador no âmbito da escravatura, colonização e apartheid.
O negro, nesse contexto é reduzido a um ser sem história, sem cultura e sem uma verdadeira identidade, ou seja, encontra-se esvaziado de toda humanidade, sendo que é desenhado como um animal.
O autor procura perceber como em muitas sociedades como a norte americana, os negros foram capazes de lutar lado a lado com os brancos na luta pela independência e de seguida continuaram a sentir-se ostracizados socialmente.
O nosso trabalho se cingi em descrever e perceber as razões que levam a pensar o negro como ser a parte, um ser não semelhante e assimilado. E no final, entender por que razão os pan-africanistas depois da independência pensam a África numa visão negra e não inclusiva.
DIFERENÇA E AUTODETERMINAÇÃO
No terceiro capítulo do seu livro, o escritor Mbembe, inaugura a sua narrativa começando por entender o negro como um conceito criado pela ciência num contexto de profunda dominação colonizadora. O discurso sobre o negro é dominado por três acontecimentos como a escravatura, a colonização e o apartheid e estes sofrem metamorfoses tendo em atenção o tempo e o espaço, apresentando significados específicos no âmbito da sua ocorrência.
O primeiro significado que Mbembe cita tem a ver com o facto de o negro ser separado de si mesmo. Neste particular o negro perdeu a essência da sua própria existência, o colonialismo destruiu a sua identidade ou seja, o negro tornou-se estranho de si mesmo com uma identidade falsificada, alienada, inerte e com uma alteridade que desconhece a sua própria existência.
O negro é o indígena que encontra-se politicamente dominado, culturalmente alienado e militarmente conquistado. Na África, ele passa a categoria de Kaffir e nos EUA é conhecido por Nigger, termos que pejorativamente são usados para (des) qualificar o negro. O autor sugere que ao invés do negro ser-ele-mesmo, passou a ser visto no âmbito do espetáculo do desmembramento e da cisão (um ser totalmente desenraizado), aquele que perdeu a noção da sua origem, cultura e história e passou a ser visto como o tribal, o primitivo ou o bárbaro.
Este processo de desmembramento do negro foi acompanhado por um quadro jurídico encetado pelo colonizador que institucionaliza um comportamento que visa expropriar, depredar e promover um autêntico empobrecimento ontológico ou, se quisermos, antropológico. A condição de escravos que serviam de mão-de-obra barata nas plantações dos colonos teve como corolário a humilhação, o rebaixamento, o sofrimento inominável ou mesmo se quiser a morte sociológica do negro.
O segundo significado exposto pelo autor, está ligado ao mercantilismo versus liberalismo que teve como epicentro, o comércio de escravos. A mercadoria (escravo negro) passa a ser vista como o centro da produção da riqueza. As novas relações estabelecidas serão estabelecidas com base na plantação e na colónia, buscando com alguma veemência o lucro fácil, sem onerosos investimentos e com a utilização de mão-de-obra barata.
O negro é visto na dimensão de um objecto, um corpo e uma mercadoria. Para Mbembe, o negro é visto do ponto de vista comercial como energia física ou um objecto que pode ser vendido, comprado e utilizado. O escravo aqui, entenda-se é o objecto que é apanhado nas guerras de Kuata-Kuata pelos seus carrascos, apinhado num navio negreiro, vendido em leilão como se de animal se tratasse. O dono da plantação compra o escravo negro não para destrui-lo ou o matar, mas para produzir e aumentar a produção.
Sem necessariamente ter um valor humano, o negro depois de desgastado, consumido ou exausto se torna inutilizável e torna-se vítima de uma desvalorização universal. A morte do escravo assinala o fim do objecto que perde o estatuto de mercadoria e produtor de riqueza.
O liberalismo aparece como uma estrutura económica que defende a liberdade comercial muito difundida por pensadores como François Quesnay e Adam Smith. Estes defendiam a necessidade de existir um estado com pouca (ou nenhuma) intervenção no mercado, sendo que deviam responsabilizar-se apenas em actividades como justiça, diplomacia, defesa nacional, segurança interna e a regulação do mercado. Porém, o liberalismo no contexto da colonização não soube garantir a luta pela existência de direitos do negro, enquanto ser humano e homem livre, pois continuava a ser visto como fonte de arrecadação de receitas.
Para explicar melhor como o liberalismo funciona, Mbembe recorre as ideias do filósofo Foucault (1979) que começa por dizer que “ é necessário, por um lado, produzir a liberdade, mas esse próprio gesto implica que do outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças”. A lógica deste raciocínio remete-nos a ideia de que o negro representa um perigo que deve ser controlado ou dominado com os piores métodos de opressão, mesmo dentro da realidade de uma democracia racial.
Mbembe insiste na ideia de que o regime de plantação e a seguir o regime colonial instituíram a questão da raça como mecanismo de exercício de poder. As ideias modernas de liberdade, igualdade e democracia são inseparáveis da escravatura e da segregação racial.
Abrimos aqui uma adenda para explicar que durante as lutas pela independência nos EUA, os negros foram convidados a lutar e de seguida seriam homens livres. Muitos lutaram para salvar a união e isso os faz conceber uma matriz de libertação, mas os revolucionários brancos idealizam a liberdade do negro num quadro gradual, pois o sistema esclavagista não se encontrava desmantelado. A declaração de independência e a constituição (de 1787) pregavam a liberdade, todavia, davam um acento tónico a questão da raça e da escravatura como suporte do antigo sistema mercantilista colonial.
Depois da guerra civil norte-americana, aprovou-se a ementa 13 da constituição que foi ratificada em 1885 e acabava oficialmente com a escravidão no país. Outras ementas foram cruciais na inclusão social do negro como a ementa 14 publicado em 1868, dava a cidadania a todos e em 1870 entra em vigor a ementa 15 que vai dar direito ao voto aos afro-americanos do sexo masculino.
Todavia, as novas dinâmicas sociais serão caraterizadas pela clara separação entre os brancos, os africanos e índios, mesmo que estes tenham participado da guerra civil. A democracia não soube garantir igualdade e equidade entre as raças e os antigos escravocratas, apoiados na ideologia da supremacia branca muito difundido e defendido pela Ku Klux Khan (Cavaleiros da Camélia Branca), passaram a sentir-se incomodados com o facto de partilharem as liberdades com os seus antigos servos negros.
Para elucidar este assunto, Mbembe, cita Alexis Toqueville (1981) que faz um retrato académico muito frutífero sobre o novo enquadramento das três raças (branco, negro e índio) dentro da democracia norte-americana. Ele diz que estas três raças não pertencem a mesma família e não só se distinguem uma das outras como tudo ou quase, as separa, sendo que o branco está para o homem e o negro para animal.
Toqueville, diz que “os negros foram os principais afetados pelo processo de destruição, uma vez que a opressão extraiu todos os privilégios de humanidade. O negro dos EUA perdeu a lembrança do seu país, já não entende a língua que os seus pais falaram; renegou a sua religião e esqueceu os seus costumes”. Este negro perdeu o direito sobre os bens da Europa, foi vendido por um e repudiado por outro.
Para Toqueville, “O escravo negro apresenta todos aspectos de degradação e objecção, é um animal de manada, é o símbolo da humanidade castrada e atrofiada, da qual emana uma exalação envenenada”. O negro procura embranquecer a sua forma de ser e estar, daí a razão que o leva a admirar os seus tiranos e a imitá-los constantemente. Mesmo estando inserido em uma democracia, ele não é dono do seu próprio destino e nem se encontra em rota de colisão com o seu patrão, pois, os resquícios da escravatura o entorpece.
Os negros foram aos EUA na condição de escravos, por essa razão, Toqueville acredita que o principal problema da democracia americana tem que ver com a presença dos negros e o seu enquadramento social. O negro podia se tornar livre, mas continuaria a ser tratado como estrangeiro ou vítima das cadeias da discriminação. No dizer de Mbembe, receber a carta de alforria não significava apagar todas a manchas da ignomínia a que os escravos foram sujeitos pela raça e escravatura.
O autor sugere que na democracia liberal, a igualdade formal pode ir a par de preconceitos que o opressor carrega, mesmo tendo dado a carta de alforria. As relações entre as duas raças prendem-se entre a degradação dos negros ou sem escravizados pelos brancos e o risco de destruição dos brancos pelos negros. Um verdadeiro antagonismo.
O negro alcançou a liberdade formal, porém, tem espaços em que não pode partilhar com os brancos, porque foram transformados em maravilhosos detritos destinados a destruição e ao ostracismo politico e social.
Toqueville sugere que o problema do negro só se pode resolver de duas maneiras: é preciso que os negros e brancos se misturem inteiramente ou se separem. O autor não acredita num futuro em que a raça negra e a branca venham conviver em pé de igualdade. Para ele, em democracia a liberdade dos brancos só é viável se acompanhada com a segregação dos negros e pelo isolamento do branco. O problema se resolve com o desaparecimento do negro no novo mundo, fazendo-os regressar a sua origem (África).
Portanto, no dizer de Abraham Lincoln devia se pôr fim aos EUA metade livre, metade escravo, isto de seguida transformou-se numa autêntica utopia.
Um homem como os outros: entre o universal e o particular
O negro livre é visto na dimensão de dúvida pura, pelo facto de que ele talvez possua uma inaptidão natural e congénita para se auto governar. A diabolização do negro e o empobrecimento antropológico continua, mas num ângulo em que se discute se ele é um animal ou um ser a caminho da humanização. Mbembe prefere acreditar que os carrascos levantam agora a tese da razão e da linguajem para dizer que é aquilo que faz o homem.
A revolução romântica levanta a tese da razão para dizer que ela confere identidade, une as pessoas e promove a salvaguarda valores e a ideia do bem. Mbembe prefere acreditar que naquelas discussões, o negro tem uma humanidade duvidosa sendo que outros preferem acreditar que tem um pouco de humanidade.
O autor sugere que esta questão remete-nos a três respostas:
- O negro é visto como um ser-a-parte:
O facto de se defender a ideia de que a humanidade do negro não possui história como tal, não conhece a lei e se encontra em profundo estado animalesco ganhando a capacidade de comer outro animal. É visto deste ponto de vista como aquele que não possui traços de razão e beleza e é construído pelos intelectuais do século XIX como alguém que nada fez para a humanidade. Estas ideias foram defendidas para legitimar o ostracismo social.
- A tese da não – semelhança na indirect rule:
Nesta dimensão olha-se para um negro que possui costumes que não podem ser destruídos, mas emendados. Neste particular, surge a figura do indígena no âmbito da indirect rule desenvolvido pela Inglaterra. Este tipo de dominação era menos onerosa e colocava o negro a lutar com o seu próprio semelhante. Esta prática era tao frutífera que mais tarde o branco utilizará os costumes para justificar a segregação racial.
- A política de assimilação:
Esta teoria vai assentar na ideia que negros e brancos podem ser homogeneizados dentro de uma humanidade universal. Todavia, isso só seria possível com a conversão do indígena através da educação. O assimilado é um individuo íntegro e não um sujeito de hábitos. Mbembe encerra esta discussão dizendo que a essência da política assimilacionista é dessubstanciar a diferença, através de todos os meios para uma categoria de indígenas cooptados para o espaço da modernidade ou seja, aptos para a cidadania.
Os teóricos ocidentais defendiam que a noção de civilização é una e o negro se torna humano caso tome para si três novas roupagens: a conversão ao cristianismo, a introdução à economia de mercado através do trabalho e adoção de formas de governo do tipo ocidental. Esta situação levará de seguida muitas lideranças africanas aprenderem a desapropriar de conceitos puramente ocidentais com alguma carga discriminatória ao negro. Dai usarem o conceito de progresso em substituição da civilização e o incremento do socialismo africano.
O discurso do colonizador no espirito e na lei retirou a essência da existência do negro. Este discurso falsificou a história africana de forma voluntaria, destruiu a imagem dos africanos e promoveu o holocausto de muitos negros. Por essa razão, o discurso dos nacionalistas africanos será dominado pela ideia da conquista do poder, o direito pela soberania e autodeterminação. Emergem nesta época duas categorias de discussão: a figura do negro enquanto vontade sofredora e sujeito sacrificado e lesado. Do outro lado, a recuperação pelos próprios negros da temática sobre a diferença cultural.
O que vem a seguir são fatalidades nas quais os negros se tornam vitimizados ou em pensadores pessimistas. A teoria da diferenciação cultural para Mbembe, apoia-se na raça, na geografia e na tradição. A raça passou a ser entendida como o conjunto de característicos fisiológicos inerentes a um grupo humano e o negro produz um discurso de reabilitação como parte da afirmação da identidade negra. A raça serve de base para a discussão sobre o novo negro que exige a co-pertença a condição humana. Isto se torna veemente nos discursos do pan-africanismo e da negritude (definiam o nativo e o cidadão como negro).
Do ponto de vista geográfico, existe um discurso do negro que pretende regressar a África Tropical e ter um encontro com os seus ancestrais no Egipto faraónico, enquanto berço da civilização africana. O negro será aquele que nasceu em África, vive em África e é de raça negra. A lógica tratada pelos africanistas desmonta um tipo de opressão e cuida de construir outra dominação pelo facto de que acredita que todo aquele que não for negro não é africano.
Os africanos conseguem conceber uma África com a ideia do regresso, pois ela é um espaço geográfico que se apresenta como o lar natural dos negros que viviam em uma espécie de exilio devido ao tráfico de escravos e a escravatura. Tem mais, a África só existia definida pelos outros e isto revelou o nosso grande atraso.
A questão da raça e a geografia apregoada pelos pan-africanistas se vai tornar numa celeuma inultrapassável, pelo facto de que vai opor brancos de negros, religiosos de ateus e selvagens de civilizados. Mas, a África tinha que olhar para frente. Mbembe prefere acautelar dizendo que não existe uma identidade negra, mas há uma identidade em devir que se assume dentro da diferença.
A ideia da construção de uma África “negrificada” na religião, cultura ou política, não parecia ser a melhor opção, visto que seria outra forma de exclusão. A construção e afirmação da identidade do negro ou do africano em geral deviam assentar no pluriculturalismo, multiracismo e diálogo intercultural. Não existem várias africas, mas apenas África.
Conclusão
Este trabalho visou conhecer o negro e a África a luz da abordagem do escritor Achille Mbembe. O continente negro tem sido ao longo de muito tempo vítima de efabulações sobre o seu passado atendendo as várias abordagens científicas eurocentradas desenvolvidas pelo norte, defendendo a tese de que os africanos não possuem história, são primitivos perenes e são incapacitados em desenvolver conhecimentos que contribuam para o engrandecimento da humanidade.
Fruto desta visão exógena, os negros são transformados em seres inferiores, aptos para serem dominados e civilizados através do tráfico de escravos, da escravatura, da colonização e do apartheid. Estes acontecimentos serão transformados como parte da luta pela afirmação do negro que defende logo após a independida a necessidade de ser livre resgatando a sua identidade.
A nossa conclusão é a de que pensar uma África hodierna é incluir todos dentro de um mesmo espaço cultural, sem haver necessidade de se “racializar” as discussões políticas, económicas e sociais do continente.
Nota
1 – Nota de leitura do livro de Achille Mbembe com o título «Crítica da razão negra».
Bibliografia
Mbembe, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona.
Foucault, Michel (2004). Lição de 24 de Janeiro de 1979, no nascimento da biopolítica. Curso no College de France, 1978-1979, Gallimard, Paris, página 65.
Tocqueville, Alexis (1981). Democracia na América. Volume I, Flammarion, Paris, página 427.