Juiz Kerson Cristóvão “ignorar” provas apresentadas pela defesa durante a instrução contraditória no caso AGT
A audiência de instrução contraditória do “Caso AGT”, que investiga alegadas fraudes no sistema informático de pagamentos da Administração Geral Tributária, expôs uma série de fragilidades e contradições na acusação do Ministério Público (MP), que colocam em causa a credibilidade de todo o processo, denunciam fontes que acompanham o caso.
Apesar das provas apresentadas pela defesa no Tribunal da Comarca de Viana (TCV), o despacho de pronúncia emitido pelo Juiz de Garantia Kerson Cristóvão a 20 de Setembro do ano em curso, acabou por reproduzir quase integralmente o texto da acusação, sem considerar os depoimentos e documentos que demonstram as falhas evidentes na investigação.
O ponto mais “chocante”, segundo a defesa dos arguidos, é a diferença entre os valores apresentados. O Ministério Público afirmou que o Estado angolano teria sofrido um prejuízo de 100 mil milhões de kwanzas, mas o PCA da AGT esclareceu em tribunal que as perdas reais não ultrapassaram seis mil milhões de kwanzas, metade dos quais — cerca de três mil milhões — já foram recuperados.
“A diferença de noventa e quatro mil milhões de kwanzas não é uma simples discrepância, mas um erro monumental que revela falta de rigor técnico e contábil na construção da acusação”, descreve a fonte para quem “apesar dessa demonstração, o despacho [do Juiz] manteve o valor fictício, sem qualquer fundamentação nova, como se a audiência de instrução jamais tivesse ocorrido”.
Outro ponto central é o enquadramento jurídico do crime de peculato. Vários acusados desse crime nunca foram funcionários da AGT nem de qualquer instituição pública, o que, por lei, torna impossível essa tipificação penal.
“O peculato exige, como elemento essencial, a qualidade de funcionário público. Ao manter a imputação a indivíduos sem vínculo com o Estado, o Ministério Público e o Juiz de Garantia Kerson Cristóvão, que ratificou a acusação, violam um princípio básico do Direito Penal”, disse ao Club-K um dos advogados, que acrescentou que “trata-se de uma falha tão grave que deveria, por si só, levar à rejeição do despacho de pronúncia”.
Durante a audiência, altos responsáveis do Ministério das Finanças confirmaram o que a defesa vinha sustentando desde o início. O Diretor Nacional do Tesouro e o Diretor Nacional da Unidade de Gestão da Dívida Pública foram claros ao afirmar que os arguidos não tinham qualquer poder ou influência sobre os mecanismos de pagamento de dívidas públicas, processos que obedecem a controlos rigorosos e múltiplos níveis de validação.
Explicaram ainda que as operações de cessão de créditos entre empresas privadas não causaram qualquer prejuízo financeiro ao Estado, uma vez que os pagamentos realizados correspondiam a serviços efetivamente prestados. O eventual impacto seria apenas de natureza reputacional, e não patrimonial.
De acordo ainda com a defesa, no campo técnico, as falhas da investigação são ainda mais preocupantes, tendo ressaltado que o Diretor do Gabinete de Tecnologias de Informação (GTI) da AGT e o Diretor-Geral do SETIC, dois dos principais responsáveis pelos sistemas informáticos que suportam os pagamentos e pela deteção inicial das irregularidades, nunca foram ouvidos pelo Ministério Público (MP).
Ambos foram interrogados apenas pelo SINSE, o que levanta dúvidas sobre a independência e a imparcialidade da investigação. São precisamente estas figuras técnicas que poderiam ter esclarecido, com base em dados concretos, o funcionamento do sistema e a origem dos erros apontados — mas foram ignoradas pelo Ministério Público.
A defesa também chamou a atenção para “irregularidades processuais graves”, apontando que há arguidos que foram detidos sem nunca terem sido ouvidos em interrogatório pelo Ministério Público, e outros que nem sequer figuram na acusação, embora tenham sido privados de liberdade.
“Esses abusos representam uma violação direta das garantias constitucionais e do princípio do devido processo legal, transformando a investigação num ato de intimidação e num atentado à justiça”, lê-se numa exposição enviada ao Club-K.
Acrescenta que o despacho de pronúncia, que deveria avaliar criticamente as provas e ponderar os elementos recolhidos durante o contraditório, acabou por se transformar numa ratificação automática da acusação. O Juiz Kerson Cristóvão ignorou provas documentais, depoimentos de autoridades técnicas e financeiras, e os próprios erros de base do Ministério Público.
O contraditório, que deveria servir para corrigir injustiças e filtrar acusações infundadas, foi reduzido a uma mera formalidade burocrática, sublinhando que o Caso AGT, que surgiu sob o discurso do combate à corrupção e à fraude, transformou-se num símbolo da fragilidade das instituições e da falta de independência judicial.
“Com números inflacionados, crimes juridicamente impossíveis e provas ignoradas, o processo passou a representar não apenas uma controvérsia judicial, mas um alerta sobre a forma como a justiça pode ser usada para legitimar erros e distorções”, reforça a exposição, ironizando que “cem mil milhões de kwanzas de dúvida tornaram-se, assim, o retrato de um sistema que, em vez de perseguir a verdade, optou por repeti-la — mesmo quando ela se mostra manifestamente falsa”.
A instrução contraditória do “Caso AGT” é uma fase do processo judicial em que arguidos e defesas contestam a acusação do Ministério Público, que os acusa de defraudar o Estado em mais de 100 mil milhões de kwanzas.
Iniciada em setembro de 2025 no Tribunal da Comarca de Viana, esta fase é facultativa, realizada à porta fechada para proteger o segredo de justiça, e tem como objectivo permitir ao tribunal avaliar os elementos de prova antes de decidir se o caso seguirá para julgamento.
Club-K

