Pedido Urgente de uma Missão de Apuração de Factos das Nações Unidas para Investigar o Massacre em Angola (28–30 de Julho de 2025)

Compartilhe

Assunto: Pedido Urgente de uma Missão de Apuração de Factos das Nações Unidas para Investigar o Massacre em Angola (28–30 de Julho de 2025)

I. INTRODUÇÃO E CONTEXTO

Sua Excelência,

Nós, as organizações e indivíduos abaixo assinados, dirigimo-nos a Vossa Excelência com profunda dor e alarme relativamente ao massacre ocorrido em Angola entre 28 e 30 de julho de 2025, durante manifestações pacíficas contra o aumento dos preços dos combustíveis. Relatos credíveis indicam que pelo menos 30 civis foram mortos, mais de 177 ficaram feridos e mais de 1.500 foram detidos arbitrariamente pelas forças de segurança angolanas, que recorreram a força excessiva e desproporcionada, incluindo munições reais contra manifestantes desarmados.

De facto, este padrão sistemático de violência representa graves violações dos direitos humanos fundamentais e do direito internacional, perpetradas por agentes estatais contra os seus próprios cidadãos, que exerciam legitimamente os seus direitos à liberdade de expressão e de reunião pacífica, podendo configurar crimes contra a humanidade. A magnitude e gravidade destas violações exigem intervenção internacional imediata para garantir a responsabilização, justiça e prevenção de futuras atrocidades.

II. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS

A. Direito Internacional dos Direitos Humanos

Os acontecimentos de 28–30 de julho de 2025 constituem violações sistemáticas de normas imperativas do direito internacional (jus cogens), incluindo:

  1. Direito à Vida (Artigo 6, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – PIDCP): O assassinato ilegal de pelo menos 30 civis constitui privação arbitrária da vida, proibida pelo direito internacional consuetudinário.
  2. Liberdade de Expressão e de Reunião (Artigos 19 e 21, PIDCP): A repressão violenta de protestos pacíficos viola as obrigações de Angola nos termos da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ratificada em 1990.
  3. Proibição de Tortura e de Tratamentos Cruéis (Artigo 7, PIDCP; Convenção contra a Tortura): Relatos de espancamentos, violência sexual e negação de cuidados médicos a detidos configuram tortura e maus-tratos.
  4. Entre outras atrocidades.

B. Responsabilidade do Estado e Dever de Diligência

Nos termos dos Artigos da Comissão de Direito Internacional sobre Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos (2001), a República de Angola é plenamente responsável pelos atos internacionalmente ilícitos cometidos pelas suas forças de segurança. A falha do Estado em investigar, julgar e providenciar reparações constitui uma violação contínua das suas obrigações internacionais.

III. O VÁCUO JURISDICIONAL E A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DA ONU

A. Estatuto de Não Parte de Angola ao Estatuto de Roma

Angola não é Parte do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), o que cria uma lacuna significativa de responsabilização por crimes internacionais. O TPI poderia, em teoria, exercer jurisdição se:

  1. O Conselho de Segurança da ONU remetesse a situação ao abrigo do Artigo 13(b) do Estatuto de Roma; ou
  2. Os crimes ocorressem no território de um Estado Parte ou fossem cometidos por um nacional de um Estado Parte.

No entanto, a atual dinâmica política no Conselho de Segurança torna tal remessa altamente improvável, e os crimes ocorreram inteiramente em território angolano.

B. Limitações da Jurisdição Universal

Embora os Estados possam exercer jurisdição universal sobre crimes internacionais, os obstáculos práticos incluem:

  1. Considerações sobre imunidade diplomática,
  2. Falta de cooperação das autoridades angolanas,
  3. Limitações de recursos para processos judiciais no estrangeiro.

C. Missões de Apuração da ONU como o Único Mecanismo Viável de Responsabilização

Na ausência de jurisdição do TPI, as Missões de Apuração de Factos da ONU representam o principal mecanismo disponível para garantir responsabilização internacional, oferecendo:

  1. Documentação Imediata: Preservação de provas antes que desapareçam ou sejam destruídas,
  2. Legitimidade Internacional: O selo da ONU confere credibilidade e peso político,
  3. Função Preventiva: Efeito dissuasor contra futuras violações,
  4. Base para Justiça Futura: Criação de registos probatórios para potenciais processos futuros.

IV. AUTORIDADE LEGAL PARA MISSÕES DE APURAÇÃO DA ONU

A. Autoridade do Secretário-Geral

A Declaração da ONU sobre Missões de Apuração de Factos (Resolução 46/59 da AGNU, 1991) estabelece que tais missões podem ser empreendidas pelo Secretário-Geral para:

  1. Apurar factos relevantes relacionados a disputas ou situações,
  2. Prevenir o surgimento ou agravamento de disputas,
  3. Facilitar a resolução pacífica de disputas.

B. Autoridade do Conselho de Direitos Humanos

O Conselho de Direitos Humanos possui poderes implícitos ao abrigo da Resolução 60/251 da AGNU para estabelecer missões de apuração e comissões de inquérito. Desde 2006, o Conselho já mandatou mais de 40 mecanismos deste tipo, incluindo missões recentes em Myanmar, Síria e Sudão, demonstrando prática consolidada e precedente jurídico.

C. Autoridade da Assembleia Geral

Nos termos do Artigo 10 da Carta da ONU, a Assembleia Geral pode discutir qualquer questão no âmbito da Carta e formular recomendações, incluindo o estabelecimento de mecanismos investigativos quando o Conselho de Segurança não age.

V. DOCUMENTAÇÃO DE VIOLAÇÕES SISTEMÁTICAS

A. Declarações Oficiais da ONU

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) já expressou grave preocupação, com o porta-voz Thameen Al-Kheetan afirmando em 31 de julho de 2025:

“As autoridades em Angola devem realizar investigações rápidas, completas e independentes sobre a morte de pelo menos 22 pessoas… Imagens não verificadas sugerem que as forças de segurança usaram munições reais e gás lacrimogéneo para dispersar manifestantes, o que aponta para um uso desnecessário e desproporcional da força.”

B. Relatórios de ONGs Internacionais

A Amnistia Internacional documentou os assassinatos de julho de 2025 como parte de um padrão sistemático de violência estatal, afirmando:

“Os assassinatos, ferimentos e detenções em massa constituíram graves violações de direitos humanos que exigem responsabilização e justiça para as vítimas.”

C. Padrão de Impunidade

O massacre de julho de 2025 representa a continuação de violações sistemáticas documentadas por organizações internacionais:

  1. Maio de 2015: A polícia angolana declarou que 13 foram mortos no Monte Sumi, Huambo, mas a UNITA e ativistas afirmam que mais de 1.000 civis foram mortos pela polícia e forças armadas.
  2. Janeiro de 2021: Mais de 100 mortos em Cafunfo, província da Lunda Norte.
  3. Maio de 2022: Dois mortos durante greve sindical de construção em Cambambe.
  4. Junho de 2023: Três mortos, incluindo uma criança de 12 anos, na província do Huambo.
  5. Novembro de 2020: Assassinato de Inocêncio de Matos durante protesto pacífico em Luanda.

Além disso, a Human Rights Watch, no seu Relatório Mundial de 2025, documentou:

“Ao longo de 2024, a polícia angolana foi credivelmente implicada em assassinatos, violência sexual, uso excessivo da força, detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos contra ativistas e manifestantes.”

Nenhum autor foi responsabilizado por estes assassinatos, demonstrando impunidade sistemática.

VI. VIOLAÇÕES ESPECÍFICAS QUE REQUEREM INVESTIGAÇÃO

A. Execuções Extrajudiciais

O Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais estabeleceu que o uso de força letal contra manifestantes pacíficos constitui privação arbitrária da vida, exceto se:

  1. Existir ameaça iminente à vida,
  2. Meios menos letais forem insuficientes,
  3. A força utilizada for estritamente proporcional.

As evidências sugerem que nenhuma destas condições foi cumprida durante os acontecimentos de julho de 2025.

B. Desaparecimentos Forçados

O caso do ativista Serrote José de Oliveira, baleado e subsequentemente mantido incomunicável desde 28 de julho de 2025, pode constituir desaparecimento forçado nos termos da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados.

C. Tortura e Maus-Tratos

Relatos de:

  1. Espancamentos sob custódia,
  2. Negação de cuidados médicos a detidos feridos,
  3. Violência sexual contra detidos,
  4. Detenção prolongada em regime de incomunicabilidade,

configuram tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante, proibido pelo direito internacional consuetudinário.

VII. PRECEDENTES E ANÁLISE COMPARATIVA

A. Respostas Semelhantes da ONU a Estados Não Partes

A ONU já estabeleceu missões de apuração em países que não são Estados Partes do Estatuto de Roma, incluindo:

  1. Myanmar (Mecanismo Investigativo Independente estabelecido pela Resolução 73/264 da AGNU),
  2. Síria (Comissão de Inquérito estabelecida pela Resolução S-17/1 do CDH),
  3. Sri Lanka (investigação do ACNUDH mandatada pela Resolução 25/1 do CDH),
  4. Coreia do Norte (Comissão de Inquérito estabelecida pela Resolução 22/13 do CDH).

Estes precedentes demonstram que a não ratificação do Estatuto de Roma não impede a ação investigativa da ONU quando ocorrem violações graves.

B. Contexto Africano Recente

A Missão Internacional Independente de Apuração de Factos sobre o Sudão foi estabelecida pela Resolução 54/2 do CDH em outubro de 2023, apesar de o Sudão não ser Estado Parte do TPI, demonstrando precedente contemporâneo para situações africanas.

VIII. MANDATO E ESTRUTURA RECOMENDADOS

A. Mandato Investigativo

Apelamos respeitosamente para o estabelecimento de uma Missão de Apuração de Factos abrangente, com mandato para:

  1. Estabelecer Factos: Documentar violações cometidas entre 28–30 de julho de 2025 e investigar o padrão mais amplo de repressão,
  2. Identificar Responsáveis: Determinar responsabilidades individuais e de comando pelas violações,
  3. Preservar Provas: Recolher e preservar provas para futuros processos de responsabilização,
  4. Avaliar Causas Estruturais: Examinar fatores sistémicos que possibilitaram tais violações,
  5. Recomendar Soluções: Propor medidas de responsabilização e reformas institucionais.

B. Âmbito Temporal e Geográfico

  1. Foco Primário: Eventos de 28–30 de julho de 2025,
  2. Análise Contextual: Padrão de violações desde 2015 ou 2020 para estabelecer a natureza sistemática,
  3. Cobertura Geográfica: Todas as províncias afetadas (Luanda, Huambo, Benguela, Huíla e Lunda Norte).

C. Requisitos de Especialização

A Missão deve incluir:

  1. Peritos em direito penal internacional,
  2. Investigadores forenses,
  3. Especialistas em direitos humanos,
  4. Analistas de forças de segurança,
  5. Peritos em trauma e violência baseada no género.

D. Cooperação e Acesso

Embora o consentimento de Angola seja preferível, a gravidade das violações e a impunidade sistemática justificam avançar mesmo sem cooperação plena, seguindo precedentes estabelecidos nas investigações da Síria e de Myanmar.

IX. APOIO INTERNACIONAL E MOMENTO POLÍTICO

A. Desenvolvimentos Regionais

A atual presidência de Angola na União Africana cria pressão política adicional por responsabilização. O Quadro de Política de Justiça Transicional da UA (2019) enfatiza a importância da busca da verdade e da responsabilização por graves violações de direitos humanos.

B. Pressão Bilateral

Os Estados Unidos já impuseram sanções direcionadas a antigos funcionários angolanos ao abrigo da Lei Global Magnitsky, demonstrando disposição internacional para responsabilizar líderes angolanos por violações de direitos humanos.

C. Mobilização da Sociedade Civil

Extensa documentação da Amnistia Internacional, Human Rights Watch e organizações da sociedade civil angolana fornece uma base probatória robusta para a ação internacional.

X. NECESSIDADE URGENTE E CALENDARIZAÇÃO

A. Preservação de Provas

Ação imediata é essencial para:

  1. Entrevistar testemunhas antes de intimidação ou esquecimento,
  2. Preservar provas físicas antes de destruição,
  3. Documentar ferimentos enquanto as evidências médicas ainda estão disponíveis,
  4. Proteger potenciais testemunhas de represálias.

B. Efeito Dissuasor

Uma resposta internacional rápida sinalizaria às autoridades angolanas que tais violações não serão toleradas e pode prevenir escaladas durante protestos em curso.

C. Direitos das Vítimas

O direito à verdade, justiça e reparações para as vítimas e suas famílias exige atenção imediata. O atraso agrava o sofrimento e mina a credibilidade da proteção internacional dos direitos humanos.

XI. CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS

A natureza sistemática das violações, a escala das vítimas, o padrão de impunidade e a ausência de mecanismos internos de responsabilização criam fundamentos convincentes para a intervenção da ONU. A não ratificação do Estatuto de Roma por Angola torna uma Missão de Apuração de Factos da ONU o único caminho viável para a responsabilização internacional.

Solicitamos, portanto, respeitosamente a Vossa Excelência que:

  1. Estabeleça imediatamente uma Missão Internacional Independente de Apuração de Factos sobre Angolaatravés dos mecanismos adequados da ONU,
  2. Garanta recursos adequados para uma investigação abrangente, incluindo capacidades forenses e proteção de testemunhas,
  3. Coordene com os órgãos relevantes da ONU, incluindo o ACNUDH, Relatores Especiais e escritórios regionais,
  4. Envolva o Conselho de Segurança para garantir apoio político e logístico à Missão,
  5. Estabeleça prazos claros para o envio da Missão, investigação e apresentação de relatórios,
  6. Garanta uma abordagem centrada nas vítimas, com participação significativa das comunidades afetadas.

Os olhos da comunidade internacional estão sobre nós. A história julgará se as Nações Unidas cumpriram o seu compromisso fundamental com a dignidade humana e o Estado de Direito perante tais violações graves.

As vítimas do massacre de julho de 2025, as suas famílias e o povo de Angola merecem nada menos que o nosso compromisso inabalável com a verdade, a justiça e a responsabilização.

Estamos prontos para cooperar plenamente com qualquer Missão da ONU e fornecer todas as provas, testemunhos e documentação disponíveis para apoiar a busca por justiça.

Respeitosamente,

Florindo Chivucute

Diretor Executivo

Friends of Angola

As Organizações Subscritoras:

  • Omunga
  • Mudei 
  • Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD)
  • Handeka
  • Friends of Angola

Radio Angola

Radio Angola aims to strengthen the capacity of civil society and promote nonviolent civic engagement in Angola and around the world. More at: http://www.friendsofangola.org

Leave a Reply