OS NEGÓCIOS ILEGAIS DE TANY NARCISO – 1.ª SECÇÃO

Compartilhe

O activista Nuno Álvaro Dala publicou um relatório sobre os dez anos de gestão ruinosa de Tany Narciso, administrador do Cazenga, onde demonstra que o governante “transformou o Cazenga num município-negócio, através da criação e funcionamento de uma extensa, complexa, intrincada e opaca rede de negócios ilegais que lhe tem rendido centenas de milhões de kwanzas”.

A pesquisa durou exactamente um mês, diz Nuno na introdução, que avançou terem participado “387 munícipes, os quais forneceram informações em sede de entrevista, inquérito e outros recursos”. Alguns nomes de participantes foram ocultados. O relatório foi dividido em nove secções, e a Rádio Angola passa desde hoje a publica-lo na íntegra sob autorização do autor.

1 – Breve caracterização do Município do Cazenga

Município do Cazenga é um dos sete municípios que compõem a província de Luanda. Situado numa região semiárida de clima tropical quente e seco, com uma estação chuvosa de Novembro a Abril e uma estação seca de Maio a Outubro, o Cazenga ocupa uma área de 41.6 km2 (quarenta e um quilómetros e seiscentos metros quadrados).

Divisão administrativa: Cazenga é constituído pelo Distrito Urbano do Hoji Ya Henda, Distrito Urbano do Cazenga, Distrito Urbano do Tala Hady, Distrito Urbano de Kima Kieza, Distrito Urbano do Kalawenda e pelo Distrito Urbano de 11 de Novembro. Limites: Cazenga é limitado, a Norte, pelo Município do Cacuaco, a Sul pelo Município de Kilamba Kiaxi e pelo Distrito Urbano do Rangel, a Leste pelo Município de Viana e a Oeste pelo Distrito Urbano do Sambizanga.

População: O município tem cerca de 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes(1). Segundo o Development Workshop Survey (2012), «mais de 100 pessoas se mudam do Cazenga todos os dias – cerca de 50.000 por ano». Obviamente, este número é actualmente (em 2018) superior, rondando num total anual as 70.000
pessoas.

Historial: Por volta do século XVII, a região onde se situa o actual Município do Cazenga era uma zona distante dos aglomerados habitacionais de Luanda, povoada por animais selvagens que se dessedentavam nos riachos que aí existiam. Segundo o Arquivo Histórico da Administração do Município (e outras fontes), conta-se que foi durante o referido século que chegou a esta zona um cidadão proveniente da região que é agora a República do Congo, de nome Miguel Pedro Cazenga, que ali se instalou, ocupando uma enorme extensão de terra que ia desde o Largo do Kinaxixi até ao actual Município de Viana.

Miguel Pedro Cazenga e seus descendentes viveram desde àqueles tempos nestas paragens. Consta também que um deles, Pedro Guilherme Cazenga, faleceu na região do actual município a 9 de Janeiro de 1946 e que em sua homenagem foi definida essa data como dia comemorativo do Município do Cazenga.

No final da década de 1960, o Estado colonial construiu os chamados «bairros indígenas» para a população africana, isto é, autóctone, expulsa de áreas onde vivia e que iam sendo procuradas devido à rápida expansão da cidade e da população de origem europeia. Com a expansão da cidade de Luanda, a população africana foi sendo empurrada para a periferia, surgindo os chamados musseques.

A esta população juntaram-se migrantes vindos do interior, atraídos pelas melhores oportunidades económicas de uma Luanda em expansão, o que resultou num contínuo aumento da taxa de ocupação e da densidade populacional dos musseques (bairros periféricos).

Os bairros indígenas tinham um traçado organizado de ruas, que delimitava quarteirões, num modelo que facilitava o controlo dos moradores pelas autoridades coloniais portuguesas. Um destes bairros foi o «Bairro do Cazenga» que, por ser considerado distante e isolado, se manteve durante muito tempo com uma taxa de ocupação baixa em comparação com outros bairros da época.

No final do período colonial, foi estimulada a instalação de população de origem europeia nas zonas periféricas da cidade, o que aconteceu também na então chamada Freguesia do Cazenga.

A partir dessa altura, o Cazenga recebe melhoramentos urbanísticos destinados à sua melhor integração no tecido urbano da cidade de Luanda. Em 1975, o Cazenga, em particular o que se tornou depois na Comuna do Hoji Ya Henda, era um conjunto de bairros habitados maioritariamente por população de origem europeia. A partir de 1975, a guerra civil provocou a fuga de milhares de pessoas do interior do País para o litoral e, em particular, para a capital, sendo o Cazenga a zona que maior número de refugiados acolheu, o que explica o crescimento exponencial da sua população.

Condições de vida dos munícipes: Cazenga albergou uma das maiores e mais produtivas zonas industriais de Luanda e, como tal, de Angola. Fábricas como IFA, Mabor General, Ulisses, Textang, Curbol e Condel são apenas algumas das muitas fábricas que fizeram do Cazenga um centro de produção industrial de referência.

Todavia, o declínio da zona industrial do Cazenga começou a ter lugar poucos anos depois da Independência. Com o tempo, por falta de mão de obra qualificada, problemas de manutenção da maquinaria e de gestão industrial, falta de material e outros motivos, a rede industrial do Cazenga passou a converter-se gradualmente numa espécie de gigantesco cemitério industrial.

O advento da economia de mercado no início da década de 1990 foi marcado por um processo de alienação das unidades económicas do Estado, e as antigas fábricas passaram a ser meros armazéns de venda a grosso e a retalho e lojas. Algumas fábricas continuaram a funcionar até finais da década de 1990, e outras até à década de 2000.

Actualmente, pouquíssimas unidades fabris funcionam, e tal decorreu de processos de requalificação levados a cabo por empresários tenazes, sendo exemplo concreto a Condel (fábrica de condutores eléctricos). A desactivação das dezenas de unidades fabris da zona industrial do Município do Cazenga representou a elevação astronómica do índice de desemprego dos munícipes, milhares dos quais foram operários das mesmas durante anos. Muitos de tais desempregados acabaram recorrendo ao comércio precário em mercados como o Asa Branca, engrossando a já grande franja de munícipes que se dedicavam ao comércio informal.

Cazenga é um município que padece de uma série de carências traduzidas num conjunto de problemas económicos e sociais. O município é uma gigantesca lixeira. Residências a caírem aos bocados, ruas degradadas, estradas esburacadas, valas e valetas, lagos e lagoas, charcos – todos exalando cheiros nauseabundos –, poeira abundante e amontoados de lixo constituem o quadro de apocalipse social que caracteriza Cazenga há décadas. Mas não é tudo.

Imagem nº 1: Munícipes acarretando água num chafariz | Fonte: Development Workshop Survey (2012, p. 6)

Água: a vasta maioria dos 1.500.000 habitantes não possui água corrente em casa. Apenas 14% das famílias possui água canalizada (2), sendo que maioria recorre à compra da mesma em residências que a possuam (corrente ou armazenada em tanques), nos chafarizes, em camiões cisternas etc. A própria qualidade da água é, no mínimo, duvidosa (3).

Os munícipes armazenam a água em bidões e outros tipos de reservatórios. Tal como se pode ver na imagem nº 1, chafarizes foram construídos em toda a extensão do município, especialmente nos bairros mais degradados. Com o tempo, porém, grande parte dos mesmos deixou de fornecer água aos munícipes, tanto pelo falho sistema de distribuição de água como por razões técnicas traduzidas na má qualidade dos componentes com que os chafarizes foram construídos.

Energia: as falhas de energia no Município do Cazenga não constituem excepção. Antes, pelo contrário, são a marca registada que configura a má reputação da ENDE (Empresa Nacional de Distribuição de Energia). A alternativa
têm sido os geradores de pequeno e médio portes, na maioria dos casos, e de grande porte, noutros. Por exemplo, o complexo habitacional Villa Flor (localizado nas adjacências da ex-Filda e da Frescangol, respectivamente) possui gigantescos geradores que servem para o fornecimento de energia aos seus moradores, um claro sinal de que a rede pública de abastecimento de energia não é confiável. O maior exemplo paradigmático reside no facto de o próprio edifício da Administração do Município possuir um gerador industrial para o alimentar. As falhas estruturais no fornecimento de energia estão na base da escuridão da maioria das estradas do município. Por exemplo, a estrada da Rua dos Comandos (em que se localiza a Administração) apresenta-se geralmente escura, facto que potencializa a ocorrência de acidentes de viação e de actos de delinquência.

Saneamento básico: podemos afirmar com segurança que o saneamento básico no Município do Cazenga é uma tragédia. Os munícipes vivem em permanente proximidade com o que é pútrido e nauseabundo. Como já o dissemos, Cazenga é uma gigantesca lixeira. Para a vasta maioria dos munícipes, o lixo e o caos do espaço são uma extensão da sua antropologia física. Com raras excepções, os 24 bairros que compõem o Cazenga são como que subdivisões de um gigantesco aterro sanitário. As imagens seguintes demonstram o que afirmamos.

Imagem nº 2: Crianças convivem com valas cheias de lixo e outros perigos | Fonte: José Miranda (Abril, 2018)

Nesta fotografia, temos um dado interessante: o chão do espaço habitado é irregular, húmido, pútrido e uma ameaça à saúde dos moradores.

Note-se que as residências estão ligadas ao lixo e às valas, como se toda esta anormalidade fosse curial, correcta e aceitável. Os moradores convivem pacificamente com a situação, uma atitude que revela tanto uma espécie de aceitação implícita de viver no caos e na insalubridade como um estado de resignação.

Esta rua, que permanece húmida durante quase todo o ano, revela também a infraestrutura de distribuição de energia: os postos são precários, e os feitos de metal, unidos ao chão húmido, tornam real o risco de electrocussão, mas, é claro, isto nos casos de haver energia. Esta realidade não se limita aos bairros do Distrito Urbano de Kalawenda, do Distrito Urbano de Kima Kieza e do Distrito Urbano de 11 de Novembro. A tragédia é geral.

A erosão e as águas subterrâneas abundam nesta localidade do Cazenga, onde muitas casas foram abandonadas por causa das más condições de saneamento básico. A situação é semelhante ao que ocorreu há cerca de 15 anos no Bairro BCA, na zona do chamado Buraco, cujas residências foram abandonadas, porque as condições se tornaram simplesmente insuportáveis.

Imagem nº 6: Detalhe de um quintal que tem no lixo o seu suporte estrutural | Fonte: José Miranda (Abril, 2018)

A estrutura de blocos e cobertura de chapas é na verdade um quarto de banho. Um quarto de banho cercado de lixo. De muito, muito, muito lixo. Cenários deste tipo se multiplicam na vasta maioria dos 24 bairros do Município
do Cazenga. Viver no lixo é uma realidade que se converteu numa normalidade social.

A vala não possui uma estrutura que permita a drenagem das águas pútridas e o lixo. Com o tempo, os moradores transformaram a parte mais alta – composta de lixo – em «ponto seguro de passagem». Note-se a residência com a parede pintada à verde: a janela, que se encontra aberta (na altura da tiragem da fotografia) deixa os moradores à mercê do cheiro nauseabundo da vala e da enorme quantidade de lixo, bem como, é claro, dos mosquitos e moscas. Mais do que isto, a imagem revela uma espécie de paradoxo estético: uma jovem impecavelmente vestida a caminhar sobre lixo.

Imagem nº 9: A vala serpenteia as ruas | Fonte: José Miranda (Abril, 2018)

Esta vala serpenteia diversas ruas, ao passo que exala mau cheiro e representa um grande perigo, sobretudo para as crianças. Neste e noutros locais tem sido frequente crianças tomarem banho nas valas quando chove abundantemente. O capim esconde uma realidade perigosa: o chão está também permeado de objectos cortantes (cacos, pedras, pedaços de ferro etc.). As imagens aqui expostas são eloquentes em expressar o estado trágico do saneamento básico no Município do Cazenga.

Escolas: segundo o mapa estatístico do Gabinete Municipal da Educação do Cazenga, o município possui 83 escolas públicas em funcionamento, das quais 55 são primárias, 3 escolas primárias e do I Ciclo, 14 escolas do I Ciclo, 6 escolas do II Ciclo, 1 Escola de Formação de Professores (localizada na Rua dos Comandos, no Distrito Urbano de Tala Hady) e 1 Instituto Médio Politécnico (localizado na Rua das Condutas, no Distrito Urbano de Kalawenda). Deve ser notado que as duas últimas escolas são as únicas especializada na formação média técnico-profissional, o que implica que a vasta maioria dos adolescentes que conclui a 9ª classe recorre às escolas pré-universitárias (do II Ciclo), que não qualificam técnica e profissionalmente os jovens, isto é, estes precisam de, mais tarde, ingressar na universidade e, com o 2º ou 3º ano, terem equivalência de técnicos qualificados. Por outro lado, o Município do Cazenga possui um considerável número de escolas em mau estado de conservação (incluindo muitas em funcionamento). Um exemplo paradigmático reside na Escola Angola e Cuba, que se encontra desactivada há quase 10 anos (4). Fruto da tremenda pressão popular provocada pela Campanha Pública «Salvemos a Escola Angola e Cuba», a escola foi vedada.

Imagem nº 12: O velho Centro de Saúde do Hoji Ya Henda foi demolido e acabou dando lugar a um cenário do tipo apocalíptico | Fonte: Afonso Gaspar Rocha (Abril, 2018)

Instituições de saúde: o Município do Cazenga, apesar de possuir uma elevada população – de 1.500.000 – e de possuir uma considerável densidade populacional – de 36.057,7 habitantes por quilómetro quadrado –, possui apenas 2 hospitais públicos de referência, a saber, o Hospital dos Cajueiros, localizado no Distrito Urbano de Tala Hady, e o Hospital Municipal do Cazenga, localizado no Distrito Urbano de Kalawenda. Da mesma forma, possui um reduzido número de centros médicos públicos. Na verdade, o chamado Pavilhão do Asa Branca foi desactivado em consequência das fortes enxurradas que, entre outras razões, levaram à desactivação do referido centro. Por outro lado, o Centro de Saúde do Hoji Ya Henda foi desactivado há 5 anos. Demolido sob a alegação de no seu espaço ser construído um novo estabelecimento sanitário, o centro deixou de existir. O novo centro de saúde, porém, não existe.

O terreno do antigo centro funciona actualmente como local de guarda de produtos de vendedoras. Durante as noites, funciona também como espaço para práticas sexuais (a prostituição é abundante nas redondezas). Evidentemente, a rede hospitalar do município está longe de satisfazer a demanda dos munícipes. O quadro de condições de vida do Município do Cazenga não se esgota nas categoriais factuais que descrevemos. Juntam-se ao mesmo a elevada quantidade de poeira, a arborização caótica (que na maioria dos casos não segue um projecto de engenharia ambiental), o número reduzido de centros de recreação comunitária e outros males cuja natureza, dimensão e impacto nos permitem inferir aptamente que a qualidade vida da maioria dos munícipes do Cazenga é má – uma tragédia de contornos distópicos.

 

Notas

  1. Cazenga já foi o mais populoso município de Luanda, tendo chegado a alcançar uma população de mais
    2.000.000 (dois milhões) de habitantes. Actualmente, o Município de Viana é o mais populoso de Luanda,
    com uma população de 2.800.000 (dois milhões e oitocentos mil) habitantes.
  2. Ou seja, 210.000 pessoas. Caso tenha havido um aumento nesta percentagem, segundo projecções feitas
    mediante comparação dos dados oficiais e de estudos independentes, actualmente, a percentagem de
    habitantes com água canalizada não é superior a 20% (300.000 pessoas).
  3. A água vendida em cisternas requer cuidados especiais, pois muitos dos vendedores recorrem a fontes
    impróprias, tais como lagos formados em resultado das chuvas, onde abastecem as cisternas. E note-se que um número considerável dos camiões-cisterna que funcionam nesse serviço de venda água pertence a uma rede que beneficia o administrador municipal. Por outro lado, a própria rede hidráulica de fornecimento de água é antiga e se converteu em fonte de poluição da própria água nela processada e transportada.
  4. O estado de abandono e degradação da Escola Angola e Cuba levou um grupo de cidadãos e activistas a lançarem uma iniciativa denominada por Campanha Pública Salvemos a Escola Angola e Cuba, a qual foi realizada de 21 de Março a 5 de Abril de 2018. A campanha produziu diversos efeitos: (1) sob a ordem expressa do Administrador do Município, a escola passou por um processo de limpeza; (2) foi desactivada a oficina que funcionava no seu perímetro; (3) foi desactivado o parque de estacionamento que funcionava no seu perímetro e (4) a escola foi vedada. A 5 de Abril, os integrantes da campanha remeteram uma petição pública de 1733 assinaturas, na qual solicitaram: «Servem-se do presente meio para pedir a Sua Excelência Sra. Ministra da Educação, no sentido de que se digne em tomar medidas competentes desiderativas à reabilitação e/ou requalificação e consequente reentrada em funcionamento da instituição escolar em referência. A Escola Angola e Cuba tem estado sob abandono há aproximadamente uma década, tendo sido transformada numa gigantesca latrina pública, ao passo que o seu perímetro delimitatório foi transformado em oficina de automóveis, por um lado, e em parque de estacionamento, por outro. Ao longo dos anos, Sua Excelência Administrador do Município do Cazenga, Víctor Natanael Narciso, fez diversas promessas sobre a reabilitação da Escola Angola e Cuba. A última ocasião em que as fez foi em Março de 2017, quando afirmou publicamente que a escola entraria em processo de reabilitação nos dias subsequentes. Infelizmente, passado um ano, tal não passou de mais uma promessa não cumprida.» (Petição Pública, p. 1).

Leave a Reply