COMO MANDA A TRADIÇÃO DO PARTIDO
João Lourenço, enquanto membro do Conselho de Ministros, sempre aprovou as ilegais concessões milionárias que José Eduardo dos Santos foi dando aos filhos, e igualmente a forma repressiva como foram tratados todos os que ousaram reivindicar pacificamente por direitos humanos e que denunciaram a corrupção da qual ele também beneficiou em larga escala.
Após a morte de Estaline, em março de 1953, iniciou-se uma frenética luta pela sua sucessão. No meio dessa disputa estava o principal torturador do regime estalinista, o todo-poderoso comissário do povo para os Assuntos Internos Lavrenti Pavlovitch Béria, apontado por alguns pesquisadores como provável responsável pelo envenenamento do ditador.
Todos temiam Béria, sobretudo o núcleo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que daria continuidade ao regime, pois os integrantes conheciam o seu ímpeto assassino – e eram igualmente criminosos – e a quantidade de informações comprometedoras que o torturador detinha sobre eles.
Gueorgui Malenkov estava em posição de chefia, enquanto primeiro-secretário do Comité Central e presidente do Conselho de Ministros, e por isso propôs um plenário para decidir o destino de Béria. Mas foi Nikita Khruschov, que era e continuou como secretário do Comité Central do PCUS, quem dirigiu os trabalhos que ditou o fim de Béria, que já estava preso. Por mero formalismo, Lavrenti foi julgado e condenado a morte por fuzilamento ao estilo bolchevique.
As acusações que os camaradas de Béria fizeram contra ele, cujo dossier Malenkov intitulou “Sobre as Acções Criminosas de Béria contra o Partido e o Estado”, era tipicamente a forma de proceder do regime ditatorial estalinista quando queria livrar-se de alguém, de tal modo que Khruschov, o artífice de tudo e sucessor de Estaline, foi igualmente acusado de imensos erros por Leonid Brejnev em 1964, tal como mandava a tradição soviética.
Essa longa introdução tem como fonte o último livro publicado por José Milhazes com o título “Lavrenti Béria – O carrasco ao serviço de Estaline”, editado pela Oficina do Livro, e dele fizemos recurso para abordar as medidas tomadas pelo presidente de Angola João Lourenço.
Quando nasci, João Lourenço era primeiro-secretário do comité provincial do MPLA e comissário provincial de Benguela – período monopartidário, por isso primeiro era o cargo no partido, formato que ainda vigora. Passavam 10 anos com José Eduardo dos Santos como presidente da República e estava-se em guerra civil, conflito armado agudizado depois do fiasco eleitoral de 1992.
E para quem acredita que João Lourenço estará a fazer uma guerra aberta à corrupção convém perguntar se o MPLA – composto esmagadoramente por corruptos genuínos – estará disposto à imolação. Não é isto que manda tradição do partido. Pelo contrário, a tradição manda culpar os outros pelos seus próprios erros.
Enquanto durou a guerra, o MPLA, no Governo desde que Angola deixou de ser província ultramarina, justificou o descalabro social e económico com o conflito. Deitou todas as culpas pela destruição do país ao partido UNITA, e o sujeito-culpado era o seu presidente-fundador Jonas Savimbi. Este foi morto em 2002 – fim da guerra -, mas como até ao ano passado Angola continuava no topo dos piores índices mundiais então o culpado pela estagnação, culpava o MPLA-JES, ainda era a UNITA.
E deste MPLA, outrora PT, sempre fez parte o actual presidente, como Khruschov no PCR bolchevique e depois PCUS. Ambos, distintos produtos da casa, aprenderam a culpar os outros. É desta forma que temos Lourenço agora a fazer o mesmo que José fazia, mas desta vez culpando o seu antecessor.
Convencido de que a sociedade angolana e comunidade internacional aguardam ansiosos por ver o clã dos Santos e seus outrora mais próximos na lama, João Lourenço sabe que este é o seu trunfo para subir no ranking da popularidade como um justiceiro intrapartidário. Exonerar e extinguir tudo o que esteja ligado à prole de José, com enfoque a Isabel dos Santos, “uma espécie de Jonas Savimbi dos tempos actuais”, como escreveu o jornal Folha 8.
Como Khruschov à época de Estaline-Béria, João Lourenço, enquanto membro do Conselho de Ministros, sempre aprovou as ilegais concessões milionárias que José Eduardo dos Santos foi dando aos filhos, e igualmente a forma repressiva como foram tratados todos os que ousaram reivindicar pacificamente por direitos humanos e que denunciaram a corrupção da qual ele também beneficiou em larga escala.
Apresentou-se ao Parlamento Europeu com um discurso a culpar. Culpou os camaradas que roubaram dinheiro e colocaram noutros países – sem nunca ter dito onde colocou o que também roubou -, e mencionou orgulhosamente a sua lei de branqueamento de capitais – chamada de repatriamento -, referiu os processos judiciais contra alguns cleptocratas de baixo coturno – o ex-chefe do Estado-Maior General das FAA é a exceção -, e inclusive culpou e desculpou-se pelos africanos que emigram para a Europa fugindo a necro-política que vigora em muitos países do continente. Culpou!
Mas nem sempre poderá culpar quem culpa agora, e então passará à fase seguinte, que está em construção enquanto se escuda em exonerações. Lourenço tem dito que não tem exonerado por razões políticas, mas não explica quais as razões afinal. Por pressão de Isabel dos Santos, foi possível ouvir explicações sobre a extinção do contrato de concessão à Atlantic Ventures. Em regra, as exonerações não têm quaisquer esclarecimentos ao povo soberano. Essa é uma postura arrogante, autoritária, a mesma que marcou o longevo reinado do anterior presidente. Uma postura à medida da tradição do partido.
Com ansiedade almeja pelo dia da coroação como presidente do MPLA, que revela ganância por mais poder. E quer chegar a esse posto sem passar por uma eleição disputada com outros candidatos. Ou seja, será elevado a dono-disto-tudo por aclamação, como manda a tradição do partido.
Alguns defendem que ele deve acumular todos os poderes que o anterior detinha com o argumento de que só assim poderá executar plenamente as reformas que alardeia pelos quatro ventos. Discordamos. E recordamos que foi com fundamento semelhante que José Eduardo dos Santos transformou-se em dono-disto-tudo-e-arredores. A construção de um ditador.
E para quem acredita que João Lourenço estará a fazer uma guerra aberta à corrupção convém perguntar se o MPLA – composto esmagadoramente por corruptos genuínos – estará disposto à imolação. Não é isto que manda tradição do partido. Pelo contrário, a tradição manda culpar os outros pelos seus próprios erros.
Fonte: Jornal Económico