“Comissão da Verdade”
Fonte: Faustino Henrique|Jornal de Angola
Independentemente de eventuais falhas, a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação, na África do Sul, foi um exemplo positivo para África e para o mundo, razão pela qual em muitos Estados, com uma realidade pós-conflito, levantaram vozes que defendiam a necessidade de um exercício semelhante.
Aqui, em Angola, não falta(ra)m vozes que desde há algum tempo defenderam a necessidade de criação de uma comissão com funções, atribuições e fins semelhantes às da criada na África do Sul, nos anos 90, do século passado. E não há dúvidas de que, embora o período do longo conflito armado o justifique, o foco principal continua a ser os acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977, cujos processos que levem ao seu completo esclarecimento e encerramento nunca conheceram iniciativas dignas desse desiderato.
Perto de duas décadas desde o fim do conflito armado, não faltam vozes que persistem, porventura com alguma razão, na ideia de que Angola devia também e à semelhança de outras realidades, como a sul-africana, criar uma comissão que tratasse de tudo o que se passou, desde a identificação das vítimas, responsabilização ou assumpção das responsabilidades, pessoais ou colectivas, e eventualmente a possibilidade de reparações materiais, financeiras e espirituais. Esse desiderato podia efectivar-se, não necessariamente por via da criação de uma “Comissão da Verdade e da Reconciliação”, mas do seu equivalente ou de algo que servisse ao menos para que se esclarecesse tudo o que se passou durante os anos de conflito militar.
Provavelmente, para responder a esta aspiração, quase que generalizada, em que seguramente a experiência sul-africana, com a criação da TRC, terá pesado de alguma maneira, o Presidente da República, João Lourenço, ordenou, no dia 26 de Abril do corrente, a criação de uma comissão para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de Novembro de 1975 a 04 de Abril de 2002.
Segundo a nota da Casa Civil do Presidente da República, que dava a conhecer publicamente a criação da Comissão para Elaboração de um Plano de Acção para Homenagear as Vítimas dos Conflitos Políticos, a “intentona golpista do 27 de Maio de 1977” e eventuais crimes pelos movimentos nacionalistas ou partidos políticos farão igualmente parte do processo.
Esta comissão, de iniciativa presidencial, poderá ser, seguramente, a versão angolana da Comissão da Verdade e Reconciliação sul-africana, que poderá contribuir para encerrar definitivamente o “Dossier 27 de Maio” e promover o reencontro entre todos os angolanos.
Realidade sul-africana
Do inglês “Truth And Reconciliation Commission” (TRC), a Comissão da Verdade e Reconciliação foi estabelecida nos termos da Lei de Promoção da Unidade Nacional e Reconciliação, nº 34 de 1995, e baseada na Cidade do Cabo, curiosamente a então capital política durante o regime do Apartheid.
A TRC teve um número de membros de alto perfil, entre celebridades do mundo religioso, político, jurídico e até nacionalistas anti-Apartheid, nomeadamente o arcebispo Desmond Tutu (presidente), Dr. Alex Boraine (vice-presidente), Mary Burton, Advogado Chris de Jager, Bongani Finca, Sisi Khampepe, Richard Lyster, Wynand Malan, Reverendo Khoza Mgojo, Hlengiwe Mkhize, Dumisa Ntsebeza (chefe da Unidade de Investigação), Wendy Orr, Advogado Denzil Potgieter, Mapule Ramashala, Dr. Faizel Randera, Yasmin Sooka e Glenda Wildschut.
O trabalho da TRC foi organizado em três sub-comissões,-o Comité de Violações de Direitos Humanos (HRV, sigla em inglês), que investigou violações de direitos humanos que ocorreram entre 1960 e 1994, o Comité de Reparação e Reabilitação (R&R, sigla em inglês), encarregado de restaurar a dignidade das vítimas e formular propostas para ajudar, e o Comité de Amnistia (AC), que considerou pedidos de amnistia que foram solicitados de acordo com as disposições da Lei.
Qualquer sul-africano que se sentisse vítima de violência ocorrida desde 1949 até 1994, poderia apresentar-se e ser ouvido no quadro dos procedimentos, fins e atribuições da TRC. Os perpetradores de violência também poderiam dar testemunho e pedir amnistia durante o processo.
As audiências formais começaram em 15 de Abril de 1996. As audiências fizeram manchetes internacionais e muitas sessões foram transmitidas pela televisão nacional. A TRC foi uma componente crucial do processo de transição entre o regime de minoria branca para a democracia plena e livre na África do Sul e, apesar de algumas falhas, é geralmente considerada como uma experiência muito bem sucedida.
Em teoria, a comissão foi autorizada a conceder amnistia aos acusados de atrocidades durante o Apartheid, desde que duas condições fossem cumpridas: os crimes tivessem sido motivados politicamente e que toda a verdade fosse contada pela pessoa que buscava a amnistia. Ninguém estava isento de ser acusado. Assim como cidadãos comuns, os membros das forças de segurança a todos os níveis podiam ser acusados e, igualmente, membros do Congresso Nacional Africano (ANC), o partido no poder no momento do julgamento, também poderiam ser acusados. À 5392 pessoas foi recusada a amnistia, enquanto 849 receberam, efectivamente, a amnistia, num universo de 7112 peticionários (houve um número de categorias adicionais, tais como retiradas).
A comissão gerou muitas testemunhas dando depoimentos sobre os actos secretos e imorais cometidos pelo Governo do Apartheid, pelas forças de libertação, incluindo o ANC, e outras forças pela violência que muitos dizem que não teriam sido reveladas de outra forma. Em 28 de Outubro de 1998, a Comissão apresentou o seu relatório, que condenava ambas as partes, o então regime racista da África do Sul e os movimentos nacionalistas, por cometerem atrocidades.
O Jornal de Angola procurou ouvir o embaixador da República da África do Sul em Angola para, na primeira pessoa, detalhar a importância do exercício a que a pátria de Mandela se propôs fazer como passo para a materialização do processo de pacificação, estabilização, democratização e reconciliação, mas não foi bem sucedido até ao “deadline” para a conclusão do trabalho relacionado com os acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977.