RAFAEL MARQUES: «A CHANTAGEM PODE SAIR CARA À ISABEL DOS SANTOS»

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Um dos maiores críticos de Isabel dos Santos, sobre quem já escreveu inúmeros artigos a denunciar supostos casos que beneficiaram a empresária angolana, Rafael Marques reage nesta conversa com o Novo Jornal às últimas incidências sobre o “caso Sonangol”, que passou a dominar a agenda política nacional devido a declarações bombásticas do actual PCA da petrolífera nacional.

Fonte: Novo Jornal | Texto de Nok Nogueira

Na semana passada, surgiram acusações de parte a parte (entre Carlos Saturnino e Isabel dos Santos) a respeito da falência da Sonangol. O actual PCA atribui culpas formais a Isabel dos Santos, e esta em resposta ao jornal português Negócios joga a responsabilidade da falência às administrações anteriores à sua gestão. Estamos perante o caso mais flagrante do zangar de comadres e das descobertas das carecas ou tudo isso sabe ainda a tão pouco?

A falência da Sonangol é da responsabilidade primária do pai da Isabel dos Santos, o Senhor José Eduardo. É preciso lembrar que, em 2011, o FMI reportou o desaparecimento de 32 mil milhões de dólares dos cofres do Estado. O executivo do seu pai justificou-se afirmando que grande parte dos fundos deram, sobretudo, cobertura às “operações parafiscais da Sonangol”. A seguir, em 2012, José Eduardo dos Santos promoveu o então presidente da Sonangol, Manuel Vicente, ao cargo de Vice-Presidente da República. Desde então, quer Dos Santos quer João Lourenço têm sido ferozes na defesa de Manuel Vicente enquanto este enfrenta processos de corrupção em Portugal. Portanto, é efectivamente uma zanga entre comadres e uma mimada que se acha com o direito exclusivo de saquear o país com total impunidade.

O papel desempenhado pelas administrações de Manuel Vicente e de Francisco de Lemos são até agora postas de parte pelo actual PCA, mas Isabel dos Santos não deixa de sublinhar que o problema vem das anteriores administrações. Este é uma parte do problema que eventualmente esteja a ser negligenciada na análise sobre esta matéria?

Carlos Saturnino não falou da gestão das administrações de Manuel Vicente ou de Francisco de Lemos porque lhe cabia reportar sobre a administração anterior. A Isabel dos Santos, estamos lembrados, fez acusações graves contra a gestão antecessora de Francisco de Lemos e de Carlos Saturnino (enquanto presidente da Sonangol Pesquisa & Produção) durante o seu mandato. Por sua vez, foi Francisco de Lemos, enquanto presidente da Sonangol, quem teve a coragem de reportar o estado de falência da empresa, implicitamente responsabilizando Manuel Vicente. Mas todos eles, sem excepção, contribuíram para o estado miserável da Sonangol. O Lemos era o administrador financeiro de Manuel Vicente. Sabia das manigâncias do chefe. Do mesmo modo, Lemos era supervisor de Carlos Saturnino no período dos grandes “desvios financeiros” denunciados por Isabel dos Santos quando esta demitiu o então presidente da Sonangol P&P. Foi nessa altura, em Dezembro de 2016, que Isabel dos Santos se autonomeou como presidente da Comissão Executiva da Sonangol Pesquisa e Produção (P&P), e determinou que passaria a reportar a si própria. Nessa altura, em conferência de imprensa, Isabel dos Santos acusou a gestão de Manuel Vicente e Francisco de Lemos de ruinosas com três afirmações importantes: Primeiro, a Sonangol estava sem dinheiro; segundo, as contas oficiais e a contabilidade da empresa não eram fiáveis; e, finalmente, os negócios paralelos em que a petrolífera se envolveu eram ruinosos. A propósito, escrevemos no Maka Angola, que era importante Isabel dos Santos accionar os mecanismos legais, com acções judiciais para a responsabilização dos gestores a quem acusava de terem arruinado a Sonangol. Não o fez porquê? O seu pai-Presidente não agiu porquê e decretou uma amnistia, incluindo os crimes económicos? Então, a Isabel dos Santos é cúmplice e o pai é padrinho da corrupção.

«O peso político de Isabel dos Santos é o poder do pai, que neste momento está agrafado de forma insegura no MPLA e falta pouco para cair de vez»

Essa troca de acusações entre o actual PCA e Isabel não lhe parece ser o jogo do gato e o rato em que a culpa poderá morrer solteira?

A culpa não morrerá solteira desta vez. Não podemos esperar que Procuradoria-Geral da República conclua esta investigação de modo que haja julgamento. Conta mais pelo simbolismo político. Todavia, a sociedade tem evoluído bastante na sua forma de entender melhor o carácter delinquente da elite que tem estado a saquear o país. Em última instância, é o julgamento popular que vai contar. José Eduardo dos Santos já está condenado pelo povo e, se João Lourenço não punir os corruptos, acabará também julgado pelo povo. Quanto à Isabel dos Santos, é só ouvir o que se diz nas ruas. Quantas pessoas a defendem no seu perfeito juízo? Neste momento não há um jogo do gato e do rato. Quanto mais ela se opõe ao actual executivo, mais ela enterra o seu pai. Isso é importante para o país. Ela faz mais para arruinar o que resta da autoridade do pai do que os actos de João Lourenço e os descontentes dentro do MPLA. Merece todo o apoio.

Acha que o peso político de Isabel dos Santos poderá de algum modo criar um contrapeso ao inquérito instaurado pela PGR?

O peso político da Isabel dos Santos é o poder do pai, que neste momento está agrafado de forma insegura no MPLA e falta pouco para cair de vez. Nada mais. Quem são os aliados políticos dela? O porta-voz do MPLA, Norberto Garcia? O comentador da TV Zimbo, o João Paulo Ganga, que ameaça com instabilidade no país caso se acabe com a impunidade e os abusos da Isabel dos Santos? Algum militar ou agente da Polícia Nacional sairá à rua para defender os interesses da Isabel dos Santos? José Eduardo dos Santos vai fazer confusão para proteger a filha? Alguma figura relevante do MPLA, para além dos bajuladores de serviço, virá a público defender a filha do chefe? Talvez o Vice-Presidente da República e membro do Bureau Político do MPLA, Bornito de Sousa. A Tchizé, a irmã da Isabel, já o defende como a escolha do pai para presidente do MPLA. Belarmino Van-Dúnem, Luvualo de Carvalho e Manuel da Cruz Neto. Por outro lado, a chantagem pode sair cara à Isabel dos Santos. Ela enriqueceu muito por conta de operações realizadas pela Sonangol durante a gestão de Manuel Vicente. Lembramos apenas a Unitel, o BFA e a GALP em Portugal.

Rafael Marques de Morais | Foto: Novo Jornal

«O outro filho de José Eduardo dos Santos, o Filomeno “Zenu”, recentemente burlou 500 milhões de dólares do BNA, com a ajuda do pai, e anda por aí a passear que nem um granfino»

Isabel dos Santos será apenas a ponta do Iceberg político ou não se pode nunca descartar as responsabilidades de foro judicial que vão pesar sobre o assunto?

Caso a luta contra a corrupção de João Lourenço se fique apenas pela prisão preventiva do Nickolas Neto, o ex-administrador da Agência Geral Tributária (AGT), detido há seis meses por causa de uma “micha” de 24 milhões de kwanzas, ninguém o levará a sério. Será o seu descrédito total. O outro filho de José Eduardo dos Santos, o Filomeno “Zenú”, recentemente burlou 500 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola, com a ajuda do pai, e anda por aí a passear que nem um granfino. Devia estar na cadeia. Depois, os esquadrões da morte do SIC fuzilam os miúdos que roubam telefones e inocentes como a política de combate ao crime.

Há quem insista que o problema não deverá ser Isabel dos Santos mas, sim, uma estratégia que visa o seu pai no sentido de forçá-lo a abdicar do cargo no partido. É também o seu entendimento?

A Isabel dos Santos tornou-se num problema maior para o pai, pela sua ganância desmedida. José Eduardo dos Santos deve entregar a presidência do MPLA o mais cedo possível para merecer algum respeito e consideração. Doutra forma, acabará por sair de forma humilhante e sob apupos. Saiu bem da presidência da República, saia bem da presidência do MPLA. Pela sua boca, Dos Santos prometeu abandonar a política activa em Abril de 2018. Faltam alguns dias. Não há estratégia para forçá-lo a sair. Há alguma pressão para que ele cumpra a sua palavra.

A empresária chama o novo PCA de mentiroso e, no mesmo comunicado que emitiu logo a seguir às acusações, queixa-se de estar a ser alvo de uma “campanha politizada”. Estranhamente são as mesmas acusações, em sentido contrário, claro, de que ela era alvo quando foi nomeada pelo pai para assumir as rédeas da Sonangol?

A Isabel é bilionária, gasta 160 milhões de dólares da Sonangol em consultorias, maioritariamente prestadas por empresas suas, e continua vulgar e malcriada. Como atrás referi, ela não moveu qualquer acção judicial para que se investigassem os “desvios financeiros” por si atribuídos a Carlos Saturnino, quando o demitiu da Sonangol P&P. Este, por sua vez, acusou-a de falta de ética. Saturnino agiu de forma correcta e demonstrou coragem. Se ela tem provas de corrupção contra o actual PCA da Sonangol que as apresente. Estamos à espera com todo o interesse. Seria importante fazermos um levantamento das mentiras públicas da Isabel dos Santos e de Carlos Saturnino, só para termos uma ideia de quem faz da mentira uma prática corrente. Nem precisamos de lembrar quem disse que ficou rica a vender ovos.

«A podridão é uma característica comum da classe dirigente»

Era previsível que fosse esse o desfecho depois de uma nomeação, também esta polémica em função das acusações de nepotismo?

Sim. Eu apresentei uma queixa à PGR contra o acto de nepotismo praticado por José Eduardo dos Santos ao ter nomeado a filha para presidente da Sonangol. Na mesma queixa, referia-me também ao conflito de interesses potenciados pelos negócios cruzados de Isabel dos Santos e Sonangol na Unitel e GALP. A resposta do então procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, foi: “Não pode a Procuradoria-Geral da República, porque incompetente, conhecer ou determinar a instauração de algum processo-crime por denúncia contra o Presidente da República, o que é da competência estrita e absoluta da Assembleia Nacional, pelo que indefiro o pedido constante do requerimento em apreciação”. O PGR, enquanto zelador da legalidade, comunicou à Assembleia Nacional a denúncia de um cidadão? Não! Resultado: a cegueira em encobrir-se todas as arbitrariedades de José Eduardo dos Santos acabou por criar muros altíssimos que aprisionaram a sua tranquilidade e não lhe deixam saídas airosas. Mesmo tendo saído pelos próprios pés da Presidência da República, arrisca-se a um tropeção politico fatal ali na sede do MPLA. A Isabel não vê isso e não dá descanso ao pai.

«José Eduardo dos Santos já está “condenado pelo povo e, se João Lourenço não punir os corruptos, acabará também julgado pelo povo. Quanto à Isabel dos Santos, é só ouvir o que se diz nas ruas»

O que é que pensa que está a escapar a este processo, ou seja, que chave mestra pensa não ter sido ainda utilizada e quem dos protagonistas envolvidos a teria como trunfo?

O maior trunfo que pode ser usado é o arrependimento, a contrição e a promessa de devolver o que é alheio. É o engajamento, sem reservas, para as mudanças que se impõem no país para retirá-lo da crise. É a solidariedade para a realização do bem comum. A Isabel dos Santos está a tentar fazer passar a ideia de que tanto ela como o pai têm trunfos sobre os podres dos outros. Isso não são trunfos. A podridão é uma característica comum da classe dirigente. Todos sabemos disso. Poxa! Como pode alguém insistir que a corrupção deve prevalecer, assim como a impunidade, porque ninguém está limpo? Há o caminho do bem. Ninguém que é corrupto ou mau deve continuar a sê-lo. Há sempre a escolha de fazer diferente. Por exemplo, tivemos uma guerra fratricida. Não é bonito vermos hoje irmãos que antes matavam a favor do MPLA ou da UNITA a conviverem pacificamente? Então, não seria bonito vermos, amanhã, ladrões e vítimas a conviverem pacificamente e solidários na melhoria do país e das condições de vida dos cidadãos?

O Ministério Público mandou instaurar um inquérito em função das declarações/acusações do PCA da Sonangol, o que de algum modo deixa a coisa um pouco em suspense na medida em que entra em acção a questão do segredo de justiça. Em todo o caso, da parte de quem governa, esperava uma reacção mais acutilante do Executivo a esse respeito, tratando-se de fundos públicos que estão em causa?

O segredo de justiça é sempre uma conveniência para o poder. Qual foi o segredo de justiça no Caso Miala, por exemplo, ou no caso dos “15+2”, os revus? O João Maria de Sousa não chegou a apresentar provas fabricadas ao corpo diplomático e a deputados quando o caso dos revus se encontrava em segredo de justiça? Todavia, o segredo de justiça, que deve ser respeitado, não é desculpa para que não se informe a sociedade sobre a existência ou não de processos e a sua devida tramitação.

Isabel dos Santos parece querer disparar em todas as frentes, indicando mesmo nomes ou accionistas de bancos. Acredita que em situação de maior desconforto ela poderá vir a ser uma espécie de “bomba-relógio”?

Essa “bomba-relógio” não tem rastilho. É de brincadeira. A Isabel já vem tarde. Notei a circulação recente de uma tabela de accionistas do BAI, feita por mim em 2012. Na minha investigação “Bai à Lavandaria”, expliquei detalhadamente como Manuel Vicente e José Castro Paiva, como gestores da Sonangol, “usaram os seus cargos para transferir um total inicial de dez por cento de um investimento público para os seus nomes próprios”. Isso era crime de peculato. O artigo saiu em Junho de 2012 e, dois meses depois, Manuel Vicente tornou-se Vice-Presidente da República. José Eduardo dos Santos, o pai da Isabel, promoveu-o e aparou-lhe o jogo. O jornal Expansão tem feito suplementos com as estruturas accionistas dos bancos. Se a Isabel dos Santos quer denunciar a corrupção nos bancos, na Sonangol e, de um modo geral, o que se passou durante a presidência do seu pai, temos de apoiá-la. Força! O combate contra a corrupção deve unir-nos a todos. Durante anos fui chamado de maluco, de parasita, de agente da CIA, antipatriota por expor, de forma consistente e isolada, a corrupção e o comportamento nefário de muitos dirigentes. Agora, vejo, contente, que tanto João Lourenço como a Isabel dos Santos se manifestam como activistas anticorrupção. Todavia, a Isabel dos Santos é uma das principais beneficiárias da corrupção institucional desenfreada apadrinhada pelo seu pai durante muitos anos. Por isso, devemos encorajá-la, antes de mais, a devolver o que é alheio. Devemos encorajá-la também a começar a frequentar a igreja, com o pai, para encontrar o caminho do arrependimento, da bondade e da redenção. Só assim evitará as contradições insuportáveis entre as suas declarações públicas e os seus actos. “Afasta-te do mal e pratica o bem e viverás sempre em segurança”, anuncia o Salmo 3:27.

Retorno de capitais ao país: «A Lei de Repatriamento é um nado-morto»

O desfecho ou o modo como este processo for conduzido poderá retirar ou acrescentar algum crédito a João Lourenço?

João Lourenço ganhou grande popularidade com algumas exonerações feitas por si, e perdeu bastante popularidade com nomeações de mais do mesmo. Agora está em ponto morto. Caso alguns dos grandes salteadores dos cofres do Estado e do património público não sejam levados a tribunal e passem algum tempo de reflexão nos estabelecimentos prisionais, esse governo terá de enveredar pela repressão para se impor. Não terá crédito popular porque o tema central do governo de João Lourenço é o combate à corrupção. A Lei de Repatriamento de Capitais, a grande bandeira legislativa contra a corrupção, é um nado-morto. Mesmo em Angola, vários dirigentes do actual governo têm património incompatível com os seus rendimentos e devem estar sob observação judicial. Também é importante reiterar que o Presidente João Lourenço tem algumas empresas e é preciso que saibamos, publicamente, se continua accionista, se transferiu as acções para os seus filhos. Tem de dar um exemplo de transparência para estar livre de chantagens ou servir de mau exemplo para os outros membros do seu executivo. Há ainda ministros e governadores que têm interesses privados concorrenciais com as actividades do Estado.

COMBATE À CORRUPÇÃO ANUNCIADA POR JLO
«José Eduardo dos Santos também fez muitos discursos contra a corrupção»

O Rafael Marques esperava um engajamento mais pessoal de João Lourenço, já que ele chegou a declarar guerra aberta à corrupção? 

Não esperava mais de João Lourenço. Até ser candidato presidencial, ele nunca tinha falado publicamente contra a corrupção. De repente, é o
maior activista anticorrupção aos olhos do povo. Isso é uma ilusão. Enquanto não virmos alguns dos maiores corruptos deste país na cadeia,
deveremos considerar os discursos anticorrupção de João Lourenço apenas pelo seu simbolismo político. José Eduardo dos Santos também
fez muitos discursos contra a corrupção, tendo anunciado, em 2009, a política de tolerância zero contra a corrupção. A seguir a isso, foi o frenesim da roubalheira no país. Os dirigentes pareciam enfeitiçados, tal era a dedicação ao saque.

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